Vivendo em um período de grandes transformações sociais e políticas, Santa Dica tornou-se um símbolo de resistência para uma população rural marginalizada. Suas práticas religiosas e sociais representavam uma alternativa às imposições do coronelismo, que dominava a terra por meio da força e da expulsão de trabalhadores rurais e pequenos proprietários. Sua comunidade, assim como outros movimentos messiânicos da época, como o de Canudos, refletia a busca por justiça social e autonomia em um contexto de profundas desigualdades.
Benedita Cipriano Gomes, conhecida como Santa Dica, começou a impressionar desde jovem. Ela reuniu milhares de seguidores, instituiu um sistema de uso comum da terra, curava enfermos e pregava a igualdade e a abolição de impostos. Em 1925, após um confronto com as autoridades, foi presa, mas a pressão popular garantiu sua libertação. Sua influência era tamanha que ela comandou tropas na Revolução Constitucionalista de 1932.
Hoje, o legado de Santa Dica é revivido por sua bisneta, Luiza Mendes que está à frente de um projeto cultural intitulado "Casa de Santa Dica", que será apresentado na mostra Kzulo 2024, com estreia prevista para o dia 30 de agosto. O projeto visa criar uma ponte entre o passado e o presente, refletindo as tradições e valores de Santa Dica através de um design contemporâneo que respeita e celebra a estética goiana. Sendo mais do que uma homenagem; é uma reinterpretação do legado da bisavó, adaptada para ressoar com o público moderno e gerar um impacto duradouro na cultura local.
A proposta de Luiza é criar um espaço que não só evoca a memória afetiva e espiritual de Santa Dica, mas também integra a elegância e sofisticação que marcaram sua vida. A utilização de materiais como madeira, mármore e bambu, combinada com tecnologias modernas em iluminação e automação, busca oferecer uma experiência sensorial que reflete a singularidade e a grandiosidade da figura de Santa Dica. O projeto pretende criar um ambiente que acolha e inspire os visitantes, permitindo que experimentem a essência de Santa Dica de forma imersiva e significativa.
A jornada de Santa Dica
Jovem, Dica caiu gravemente enferma e foi dada como morta. Durante o banho do cadáver, notou-se que seu corpo suava frio, um sinal de vida que surpreendeu a todos. Após três dias de velório, Dica ressurgiu, dando início à sua trajetória como santa e curandeira. Sua "ressurreição" foi considerada um milagre, atraindo multidões de fiéis que buscavam bênçãos e curas. Logo, Dica se tornou líder de uma comunidade que crescia ao redor de sua fazenda, onde instituiu um sistema de uso comum do solo, abolindo o dinheiro e pregando a igualdade e a distribuição de terras.
Dica afirmava que a terra era de propriedade do Criador e que deveria ser compartilhada por todos. Sob sua liderança, a comunidade cresceu, reunindo cerca de 15 mil pessoas, incluindo 1.500 homens armados e 4.000 eleitores. Esse poder crescente incomodava os coronéis da região, que viam em Dica uma ameaça semelhante àquela representada por Antônio Conselheiro em Canudos, cujos ideais também desafiavam a ordem estabelecida. Assim como Conselheiro, Santa Dica se tornou uma figura emblemática de resistência contra as injustiças sociais e a opressão dos poderosos.
O conflito e a prisão
A fama de Dica e o crescimento de sua comunidade alarmaram tanto as autoridades locais quanto o clero, que passaram a denunciá-la como uma impostora. Em março de 1925, o governo estadual enviou um destacamento para prender Dica, resultando em um confronto sangrento. Apesar de sua captura, a fé de seus seguidores permaneceu inabalável. Dizem que, durante o ataque, as balas se enrolavam em seus cabelos ou batiam em seu corpo e caíam no chão, sem feri-la. Mesmo após ser presa, a pressão popular levou à sua libertação.
Após sua soltura, Dica continuou a exercer influência política, comandando um exército de 400 homens, conhecido como "pés com palha e pés sem palha", que participou da Revolução Constitucionalista de 1932. Sua tropa, apesar de analfabeta, era notável por marchar disciplinadamente graças ao estratagema de Dica de amarrar palha nos pés de alguns soldados para distinguir a esquerda da direita. Dica também enfrentou a Coluna Prestes, impedindo seu avanço pelo Triângulo Mineiro.
O legado de Santa
Santa Dica morreu em 9 de novembro de 1970, em Goiânia, e foi sepultada sob uma gameleira em Lagolândia, conforme seu desejo. Sua casa se tornou um local de peregrinação, e seu legado continua a ser celebrado por seus descendentes e pela comunidade local.
Lagolândia, agora um pequeno povoado em Pirenópolis, abriga o busto de Santa Dica em uma praça central, onde sua memória é reverenciada. A bisneta de Dica, Luiz Mendes, decidiu homenagear sua bisavó com um projeto de design intitulado "Casa de Santa Dica", que será apresentado na mostra Kzulo 2024. Luiza descreve o projeto como uma forma de resgatar as raízes culturais e espirituais de sua bisavó, incorporando elementos contemporâneos ao estilo clássico goiano.
“Maravilhosa mulher, minha bisavó nasceu em Goiás em 1905”, diz L uiza. "A arquitetura transcende o simples ato de construir; ela captura histórias, emoções e identidades. É com esse espírito que apresento o projeto desenvolvido para homenagear a memória de Santa Dica."
O projeto foi elaborado para criar um espaço que exala conforto e sofisticação, refletindo a elegância atemporal que marcou a vida de Santa Dica. O ambiente une materiais nobres como madeira, mármore e bambu, com tecnologias de ponta em iluminação e automação. "O objetivo foi criar uma atmosfera aconchegante e acolhedora, que evoca a memória afetiva e espiritual de uma mulher que deixou um legado inspirador," explica Luiza.
A influência na cultura goiana
Em 2023, um filme destacou a influência duradoura de Santa Dica na cultura popular de Goiás. Dica não foi apenas uma figura histórica em sua comunidade; suas práticas religiosas e sociais inspiraram festividades e tradições que continuam a ser celebradas em Pirenópolis, antiga Lagolândia. A atriz e educadora Juliana Mado, doutoranda em artes cênicas pela Unesp, estuda a influência de Santa Dica na cultura goiana, reconhecendo a importância dessa figura em pé de igualdade com personalidades como Cora Coralina.
Entre as produções que buscam capturar a essência de Santa Dica, destaca-se o curta-metragem "Beneditas", dirigido por Taize Inácia, que foi exibido no Instituto Histórico e Geográfico de Goiás (IHGG). A obra tem relevância como material documental ao explorar a antropologia de Pirenópolis através da dança e do olhar atento da câmera de Isaac Brum. Daraína Pregnolatto, co-roteirista do curta, destaca que Santa Dica foi uma figura revolucionária, não apenas pelas suas ações em vida, mas pelo legado espiritual e cultural que deixou e liderou movimentos de resistência e justiça social.
Luiza espera que seu projeto na mostra Kzulo 2024, não só celebre a vida de sua bisavó, mas também inspire outras pessoas a reconhecer e valorizar as raízes culturais de Goiás. "Este projeto não é apenas uma homenagem à memória de Santa Dica, mas também um convite à reflexão sobre as raízes e a espiritualidade que continuam a inspirar gerações," conclui.