The Clash abençoa os que vivem nas rebarbas da sociedade. Federico Garcia Lorca is dead: Andaluzia, cenário de tiroteio, janela aberta. The Clash fala em buraco de bala no muro. As encostas ressoam: libertem o povo. The Clash e as bombas espanholas.
Clash tem muito o que dizer. Clássicos são assim, sentenciou o escritor italiano Italo Calvino, porque interagem com o presente, ligam-se ao espírito desse tempo e provocam torrente caleidoscópica de análises críticas em torno de si. Soam novos, inesperados, revolucionários.
Alguma coisa pega fogo em nosso peito quando ouvimos o faiscante “London Calling”, cujo lançamento completa 45 anos neste sábado, 14. É o rock cru incendiando insurreição política em nossas veias e pulverizando nossas artérias com o sangue da consciência socialista.
Lançado em 1979, o elepê duplo saiu em um ano sobretudo difícil: Margaret Thatcher tomava posse como primeira-ministra do Reino Unido. Thatcher, a dama de ferro neoliberal, privatizou zilhões de serviços públicos, asfixiou os sindicatos e guerreou nas Malvinas.
Se Sex Pistols disseminava iconoclastia, o Clash optava pelo teor político. Joe Summer, filho de diplomata, tinha um estilo de canto gritado. Berrava fúria e lirismo, entrega e violência, romantismo e inconformismo. O guitarrista Mick Jones produzia riffs incandescentes, como escutamos nas faixas “Jane Jones” e “I´m So Bored With The Usa”, gravadas em 1977.
Esse álbum, “The Clash”, foi considerado pela revista “Rolling Stone” como “o disco definitivo do punk”. Comandada por Paul Simonon, a bateria incendiária da música “Career Opportunity” representa a perspectiva limitada da juventude, com trabalhos insignificantes, baixa remuneração e seguro-desemprego. “O Clash sempre foi sincero”, afirmava Strummer.
Há que se destacar, em termos sonoros, o baixo obsessivo no qual Topper Headon grooveia em “Give 'Em Enough Rope”. Clash demonstrou, nesse trabalho, crescimento musical, ingressando na América — o lugar em que o trem dos Sex Pistols havia enguiçado e onde o rosto do punk londrino, Sid Vicious, fora encontrado morto em fevereiro de 1979.
Dos States, Clash voltou para casa e, assim que seus músicos viram o noticiário, foi um susto: Tamisa inundado. “London Calling” é a única faixa na discografia clashiana que nomeia obra fonográfica: Londres colapsando, convocando a periferia global, saindo do armário. “A gente queria explodir para alcançar a América e ser global”, dizia Strummer.
Era preciso se rebelar. Sem saco para as limitações dos três acordes, Clash faz em “London Calling” rockabilly (“Brand New Cadillac”), jazz (“Jimmy Jazz”), ska (“Hateful”), disco (“Lost in the Supermarket”), reggae (“Revolution Rock”), soul (“Train in Vain”). Sendo punk, o repertório tem, claro, duas pérolas do tipo: “Four Horsemen” e “I´m Not Down”.
Terceiro-mundista por opção ideológica, Clash falava sobre a importância revolucionária da classe trabalhadora contra o status quo. Panfletava ainda sobre a necessidade em haver consciência social para combater racismo. Esse sentimento, aliás, se manifesta logo na capa de “London Calling”, que tece paródia ao disco com que Elvis Presley debutara em 1956.
Dessa vez, todavia, encaramos o baixista Paul Simonon estraçalhando seu instrumento durante show em Nova York. Embora tivesse surgido no caldeirão do punk britânico (Simonon botando pra fudê na capa cessa qualquer dúvida nessa direção), Clash queria ir além das fronteiras estéticas e, ao mesmo tempo, conservava intacta a base de tudo.
Aquela cena psicodélica dos anos 1960 pertencia ao tempo pretérito mais que perfeito. Clash experimentava novas sonoridades desde a turnê na qual percorreu os Estados Unidos e teve contato com artistas até então alheios ao universo clashiano, como Bo Diddley, Screamin’ Jay Hawkins e The Cramps: tradição versus vanguarda, clássico versus punk.
Além de tudo, reverberava em “London Calling” ecos de ópera-rock, pois havia unidade conceitual. Seus protagonistas, mantendo-se fiel aos valores socialistas clashianos, são os tipos desvalidos que flanam pelas arestas da sociedade. Strummer se manifestava contrário a isso, tanto que subiu ao palco em certa ocasião com adesivo da Frente Sandinista de Libertação Nacional colado na guitarra com a seguinte mensagem: “Nicarágua, um povo em luta”.
Como o mundo é grande demais para se prender em igrejinhas, Clash apimentou sua música com o sabor multicultural daquela Londres dos anos 1970. Funk, soul, ska, r&b, reggae poderiam, sim, tirar a rigidez sonora do punk, desde que com honestidade. “Sandinista” leva som da Motown ao estilo que livrou rock da erudição do progressivo.
Ezequiel Nevez vibrou ao escutar o disco triplo. “Fica difícil acreditar que o The Clash tenha conseguido transcender tudo o que havia feito no devastador ‘London Calling’, lançado ano passado”, escreveu o crítico na “Somtrês”. Clash foi mais do que maior grupo punk, se o fosse não seria nada ruim, mas só que Joe Strummer, Mick Jones, Paul Simonon e Topper Headon formaram o que pra muita gente é a maior banda de rock de todos os tempos.