Música significa experiência social. Gente abaixando portas, se descobrindo, se mostrando. Sons metem dedo na ferida, viram livros, mudam vidas. Como encerrar este ano sem listar os livros que têm bandas, cantores ou compositores no centro de suas narrativas?
Vejo-me obrigado a insistir naquela velha tese (aventada aqui numa resenha de disco lançado pelos Titãs) de que música não é apenas entretenimento: é arte e consciência sociopolítica. Quando Elvis Presley cantara suas onomatopéias incompreensíveis, manifestava-se contra os costumes da sua época. Os reaças, sempre eles, enlouqueceram.
Parece lógico dizer que os Beatles se insurgiram contra a caretice ou que, entre 1967 e 1970, Hendrix não fazia outra coisa senão ser reclamar do belicismo imperialista. E os Stones, com seus riffs distorcidos e suas letras sujas, seguiam pelo mesmo caminho, no qual as ruas se convulsionavam e abrigos eram necessários. Crianças, estamos a um tiro de distância!
Esses ecos, amplificados pelo The Clash e anarquizados pelo Sex Pistols, ressoaram na estética de grupos terceiro-mundistas: Plebe Rude talvez seja o melhor exemplo. Lembremos ainda do samba-punk daquele Mundo Livre S/A. Manguebeat sopra um monólogo ao pé do ouvido, indo da lama ao caos, e leva adiante a tradição de nosso cancioneiro popular.
Sem mais blá-blá-blá. A seguir, dez publicações de música que fizeram sucesso em 2024:
“O Rei de Nova York” (BestSeller). Escrita pelo crítico Will Hermes, a obra reconstrói a vida de Lou Reed. À medida que aprofundamos na leitura biográfica desse personagem, somos intimados a viajar pelo lado escuro de Nova York. Chegamos ao clímax narrativo, com a metrópole zunindo precioso material ao poeta flanador até virar sua musa intranquila.
“Uma biografia de Bob Dylan em Sete Canções” (Zain). A publicação é assinada pelo ensaísta Greil Marcus. Começa no início dos anos 1960 com “Blowin’ in the Wind”. “The Lonesome Death of Hattie Carroll”, “Ain’t Talkin’”, “The Times They Are A-Changin’”, “Desolation Row” e “Jim Jones” são os outros objetos da análise. Marcus fecha a obra com a épica “Murder Most Foul”, que nos leva a viajar pelos pensamentos de John Kennedy.
“O Beatle Relutante” (Belas Letras). Escrita pelo experiente biógrafo inglês Philip Norman, a obra parte do princípio de que os Fab Four deram a Harrison fama e riqueza, porém depositaram sobre os ombros do guitar hero fardo difícil de se carregar. Norman quis se redimir do obituário negativo que publicou quando o músico morrera, em 2001.
“Eu Fui Traficante do Keith Richards” (Sapopemba). Fotógrafo dos Stones, Tony Sanchez revela crueldades e intrigas. Não foi levado a sério lá fora, todavia. Há que se considerar, apesar disso, o fato de que o retratista conviveu com grupo londrino em seus anos mais loucos, entre as décadas de 1960 e 1970, e foi assistente pessoal do guitarrista Keith Richards.
“O Que Não Tem Censura Nem Nunca Terá” (L&PM). O jornalista Márcio Pinheiro, conhecido pelo texto atraente e sem firulas, relata como a ditadura civil-militar perseguiu o cantor e compositor Chico Buarque. Se Chico já estava na história de nossa música popular aos 24 anos, foi com essa idade que começou a ser censurado, vetado e exilado pelos milicos.
“It´s a Long Way - O Exílio em Caetano Veloso” (Garota FM Books). Para a historiadora Márcia Fráguas, autora da obra, é significativo o fato de o artista ter passado por violências silenciosas no xadrez. Caetano foi preso pela ditadura em dezembro de 1968, dias após a ditadura baixar o AI-5. Fráguas refaz exílio londrino e avalia três discos pelo viés da cena psicodélica inglesa, ligando-os ao blues de 12 compassos e roquenrol da época.
“Meu Lance é Poesia” (Martins Fontes). São 238 poemas escritos entre 1975 e 1989. Foram encontradas 27 obras inéditas, como o poema em fluxo de consciência “Work in Progress”. O livro foi organizado pelo jornalista Ramon Nunes Mello, mestre em literatura pela UFRJ. Você entende por que Agenor de Miranda Araújo Neto é o maior poeta de sua geração.
“O Cara da Plebe” (Belas Letras). Philippe Seabra, fundador da Plebe Rude, conta da efervescência jovem que deu no punk e pós-punk brasilienses. Nascido em Washington (EUA), Seabra recorda das peripécias para conseguir gravar o elepê “O Concreto Já Rachou”, lançado em 1986. Surpresa: texto é bom. Tão bom quanto os riffs do Clash ou Ramones.
“Do punk ao mangue: 40 anos de lutas, conquistas e muito ativismo político e cultural” (Ilustre Editora). Escrita pela pena inteligente do jornalista Pedro de Luna, a obra documenta samba de sotaque punk idealizado por Fred Zero Quatro, autor do manifesto “Caranguejos com Cérebro”. Aproveite para ouvir a discografia do Mundo Livre S/A.
“Criança de Domingo: Uma Biografia Musical de Chico Science” (Belas Letras). Outro título que se debruça sobre o manguebeat. José Teles é o cara quando o assunto é mangue. Sabe tudo. Afinal, conviveu com Chico Science. “Se meu corpo tem alma, minha alma também tem. Por isto existe algo mais além. O sem-fim. O fim que não termina”, diz Chico.