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Rita Lee, 75 anos

Rita Lee moldou a cara do rock brasileiro ao longo das décadas

Boa parte dos artistas que se meteram a pendurar guitarra elétrica no ombro, sobretudo mulheres, receberam influência da cantora

Rita Lee se aposentou dos palcos em 2012, aos 64 anos: críticas à polícia e sua truculência - Foto: Divulgação Rita Lee se aposentou dos palcos em 2012, aos 64 anos: críticas à polícia e sua truculência - Foto: Divulgação

A cantora Rita Lee, morta na segunda-feira, 8, aos 75 anos, quebrou barreiras durante a ditadura militar ao revolucionar a música brasileira. Em sua discografia, demonstrou inesgotável habilidade de criar histórias que atravessaram gerações. Disco após disco, Rita embalou-se pelo ritmo da lisergia, namorou o hard rock e se tornou letrista pop capaz de produzir hits com metáforas inteligentes sobre amor - eram versos que abordavam o sexo numa perspectiva despudorada e, em igual medida, deliciosamente sedutora.

Rita abandonou os palcos em 2012, aos 64 anos. Num dos últimos shows, realizado em Aracaju (SE), a polícia causou tumulto ao efetuar ação truculenta contra o público. Como fizera tantas vezes na carreira, a cantora colocou o dedo na ferida. “Me dá esse baseadinho que eu vou fumar aqui e agora. Seus cafajestes, filhos da puta”, disse ela, que foi detida. Uma vez solta, seguiu para Brasília e, por fim, despediu-se dos palcos em São Paulo.

Uns mais, outros menos, mas boa parte dos artistas que se meteram a pendurar guitarra elétrica no ombro, sobretudo mulheres, receberam influência de Rita Lee. Tudo na paulistana nascida em 31 de dezembro de 1947 representava transgressão: o cabelo cor de fogo, as maçãs do rosto imponente, a verve feminista, as tiradas sarcásticas.

Na infância, morava na Vila Mariana, bairro localizado na zona sul de São Paulo. Pela região, encontravam-se colégios tradicionais, como Marista, Cristo Rei, Bandeirantes e Liceu Pasteur, do qual Rita foi aluna. Os matriculados sentiam o raro gosto da liberdade, já que, à época, isso era incomum. Por causa de sua fobia aos palcos, uma professora de piano lhe disse para repensar a carreira artística, ao que a ruiva, sorte da música, deu de ombros.

Tudo foi ficando mais profícuo a partir de 1964, quando se aproximou do músico Arnaldo Baptista, então com 16 anos. Começaram a namorar e, tempos depois, o Wooden Faces - banda na qual tocava Arnaldo - uniu-se ao quarteto de garotas Teenage Singers - de Rita Lee. Saiu um daqui, outro foi embora dali: sobraram seis. Ao casal e aos demais, juntava-se Sérgio Dias. Para ele, Rita trouxe aos Mutantes um lado circense. “Envolveu humor, roupas e instrumentos que ela tocava, como Theremin”, analisa o músico, nas redes sociais.

Mutantes

Formada por seis pessoas, o nome escolhido foi Six Sided Rockers. A banda tocou em programas da TV Record e chegou a gravar um compacto em 1966, sob o nome O´Seis, até que divergências estéticas culminaram na debandada dos outros integrantes. Sobraram Rita - vocal e percussão - e os irmãos Arnaldo Baptista - vocal, teclado e baixo - e Sérgio Dias - vocal e guitarra. Como se chamava a nova empreitada? Os Bruxos, habitués do programa comandado por Ronnie Von. “Estou com o coração quebrado”, confessou Ronnie.

A atração chamava-se “O Pequeno Mundo de Ronnie Von”. Só que o príncipe da psicodelia brasileira achava que o nome escolhido por Rita, Arnaldo e Sérgio era ruim demais. Para dar um jeito nisso, convidou-lhes para jantar em sua casa, mostrou-lhes o livro que estava lendo, “O Império dos Mutantes”, e sugeriu-lhes que a banda passasse a se chamar Mutantes.

Mais ou menos nesse período, Gilberto Gil chamou o grupo para acompanhá-lo durante a música “Domingo no Parque”, interpretada por ele no terceiro Festival de Música Popular Brasileira, em 1967. “Comadre Rita, Anibal, cabrinha, caprichosa capricorniana, amiga. Descansa, minha irmã. Amo você. Um abraço fraterno da família Gil nos meninos Roberto, Beto, João e Antonio, nos familiares e amigos e nos fãs, assim como eu”, despede-se Gil, em rede social, ao som de “Refazenda” - foi de cortar o coração a sensibilidade do artista.

Com arranjos criados pelo maestro Rogério Duprat, a apresentação chocou o público, pois os puritanos não aceitavam a introdução de guitarra elétrica na MPB. Tanto que, meses antes, Elis Regina saíra às ruas para protestar contra o instrumento consagrado no rock. Junto dela - não menos estranho -, estava Gil. Talvez por isso as vaias expressassem insatisfação com o fato de uma canção barulhenta ir tão longe. Estavam lançadas as bases da tropicália, movimento que deu na contracultura, em Tim Maia e, nos anos 70, na imprensa nanica.

À frente das experimentações tropicalistas, Caetano Veloso convidou os Mutantes a subirem com ele ao palco do Festival Internacional da Canção para apresentar “É Proibido Proibir”, que se tornou, anos depois, um clássico. Rita desafiou os bons costumes ao tomar emprestado um vestido de noiva da atriz Leila Diniz, personagem citada na música “Todas as Mulheres do Mundo”. Tomates, latas e garrafas voaram. Caetano perdeu a paciência. “Se vocês forem em política como são em estética, estamos feitos”, reclamou.

Nova fase

Como os anos 1960 estavam ficando para trás, era preciso inventar - mais uma vez. Rita, Sérgio e Arnaldo apostaram em composições autorais. Dentre elas, destaca-se “Ando Meio Desligado”, numa levada que lembra o efeito descompressor da maconha. “Ando meio desligado/ eu nem sinto meus pés no chão/ Olho e não vejo nada/ Eu só penso se você me quer”, diz trecho da letra, lançada no elepê “A Divina Comédia ou Ando Meio Desligado”, de 1970. Com Rita nos vocais, a banda criou, ao todo, cinco discos. Kurt Cobain, do Nirvana, os elogiava.

“Minha saída do grupo aconteceu bem nos moldes de ‘o noivo é o último a saber’, no caso, a noiva. Depois de passar o dia fora, chego ao ensaio e me deparo com um clima tenso/denso. Era um tal de um desviar a cara pra lá, o outro olhar para o teto, firular um instrumento e coisa e tal. Até que Arnaldo quebra o gelo, toma a palavra e me comunica”, conta Rita, em “Rita Lee: Uma Autobiografia”. “Uma escarrada na cara seria menos humilhante.”

Por que a desligaram da banda? O motivo, acredite se quiser, não faz sentido: Arnaldo e Sérgio queriam, digamos, criar um rock mais artístico, progressivo e, como se achavam músicos virtuosos, entendiam que essa guinada musical deveria ser trilhada sem Rita. Só que ela, estrela, compositora de primeira e roqueira das maiores, uniu-se ao guitarrista Luis Sérgio Carlini, ao baixista Lee Marcucci e ao baterista Emilson Colantonio: os três formavam a cozinha do Tutti Frutti, banda na qual Rita ressurge gostosamente stoniana.

Do hard rock ao pop, Rita Lee se reinventou na carreira

Entre os discos, qualquer fã de rock and roll cita “Fruto Proibido”, de 1975, cujas canções - “Agora Só Falta Você”, “Esse Tal de Roque Enrow” e “Luz Del Fuego” - dispensam maiores apresentações. Ainda calcado no rockão com roupagem mais pesada, o grupo colocou no mercado “Entradas e Bandeiras”, até que, em 1978, lançam “Babilônia” - o carro-chefe é “Jardins da Babilônia”. A banda ainda fez, em dueto com Gilberto Gil, os discos ao vivo “Hollywood Rock” e “Refestança”, cuja turnê deste passara por Goiânia, em 1977.

Como se fosse uma ponte entre a tropicália e geração que tornou o rock rentável aos olhos do mercado, Rita Lee se casou com o guitarrista Roberto de Carvalho e, ao lado dele, se revelou letrista que saia do estilo barulhento para um pop preocupado com a comunicação de massa. O primeiro disco da dupla, “Rita Lee”, de 1979, indicava que as coisas andavam quentes na casa do casal Rita e Roberto. “Vestindo fantasia, tirando a roupa/ Molhada de suor de tanto a gente se beijar/ De tanto a gente imaginar, imaginar loucuras”, canta, em “Mania de Você”.

Se não nasceu para casar e tampouco lavar cuecas, Rita não quis luxo, nem lixo - queria saúde para gozar. Em agosto de 1976, com um filho de três meses na barriga, foi presa. A capa dos jornais não dava dúvidas: “Presa Rita Lee com maconha”. Fazia um ano que se relacionava com Roberto de Carvalho, junto de quem havia estreitado os laços um pouco antes e que tinha conhecido em 1975, época em que o companheiro de arte e vida tocava na banda de Ney Matogrosso. Assim que foram morar juntos, Roberto começou a tomar conta do pedaço.

Um ano depois, por exemplo, o Tutti Frutti estava desfeito. Rita atribui o término da banda ao fato de Carlini ter registrado o nome do grupo como se fosse dele. Mas quem se importaria com isso? De novo, reinventou-se: ela lançou em 1979 aquele que, até então, era o disco mais rentável de sua carreira, em cuja foto da contracapa aparecia grávida do terceiro filho, Antônio, e estava encostada em Roberto, que tocava guitarra. “Nunca vi uma pessoa se apaixonar tanto pelo pau do namorado ao ponto de tecer loas constantes e repetidas em tudo que cantava”, teorizou Tom Zé, num perfil da cantora publicado pela “Rolling Stone”.

Mas os fãs da velha psicodelia dos Mutantes e do rockão cru do Tutti Frutti não eram, vamos dizer assim, tão interessados nos novos rumos tomados por Rita. Em termos mercadológicos, foi a fase mais lucrativa da cantora: nove discos, parte das 55 milhões de cópias que vendeu vem daí e, mais uma vez, novos ares artísticos. Nos anos 1990, encontrou o caminho do sucesso com o “Acústico MTV” e, na década de 2000, lançou o bem acabado “Bossa ´n´Roll”. As gravadoras não queriam saber das inéditas, prefiram discos ao vivo, de releituras

Por dentro de Rita

Seja no amor ou fora dele, para saber o que Rita de fato pensava sobre a vida, bastava ouvir “Ovelha Negra”, “Mania de Você”, “Lança Perfume”, “Agora Só Falta Você”, “Baila Comigo”, “Banho de Espuma”, “Desculpe o Auê”, “Amor e Sexo”, “Reza”, “Menino Bonito”, “Flagra” ou “Doce Vampiro”, dentre outras que viraram temas de novela, comerciais de televisão e hits de rádio FM - meio de comunicação, aliás, em que trabalhou com o escritor Antonio Bivar, no programa “Rádio Amador”, após sair da Som Livre, em 1986.

Rita Lee, que homenageou em suas músicas Patrícia Galvão, a Pagu, e Leila Diniz, havia sido diagnosticada em 2021 com câncer de pulmão. Bem-humorada, chamava o tumor de Jair, brincadeira criada por Roberto. Sua batalha contra a doença comoveu a família e também o Brasil, ao ponto de o filho Beto Lee, também músico, dizer que a cura da mãe lhe emocionou “pra caralho”. O velório está marcado para quarta-feira, 10, no Ibirapuera, em São Paulo.

Em “Rita Lee - Uma Autobiografia”, com a qual concorreu ao Prêmio Jabuti em 2017, Rita Lee imaginou como seria sua morte: “algumas rádios tocarão minhas músicas sem cobrar jabá, colegas dirão que farei falta no mundo da música, quem sabe até deem meu nome para uma rua sem saída”. Vale lembrar o poeta marginal Paulo Leminski, fã confesso de Rita e de sua inteligência: “tudo/ que/ li/ me/ irrita/ quando/ ouço/ rita/ lee”. Pois é, Leminski.

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