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Robert Crumb repassa história da música ancestral do século 20

Crumb percorre história de artistas importantes desses três estilos fundamentais à cultura no século 20. Artista se tornou mestre da contracultura

Ilustrações que acompanham livro sobre história da black music: historiografia gráfica - Foto: Divulgação Ilustrações que acompanham livro sobre história da black music: historiografia gráfica - Foto: Divulgação

O blues me basta. O blues e as conversas interessantes em madrugadas regadas a cerveja. O blues e os sorrisos verdadeiros. O blues e os beijos apaixonados que alimentam o amor.

Vejo duas opções: ou você coloca Son House para tocar agora mesmo ou vai a uma livraria atrás do livro “Heróis do Blues, Jazz & Country”, lançado pelo quadrinista norte-americano Robert Crumb, 81. Fiquemos com a segunda opção. A mais curiosamente bluesy, inclusive.

Talvez ninguém tenha ido tão longe quanto Crumb em matéria de historiografia gráfica. O cara ama a “old music” (blues, jazz, bluegrass, country music) de forma desmesurada. Seus traços enxergam a alma dos músicos além do contexto histórico-social a que estão inseridos.

Fitamos toda a devoção do quadrinista pela ancestralidade sonora em “Heróis do Blues, Jazz & Country”. Mas música para o artista, que fique claro, se trata daquelas velhas canções rurais. É o blues antes da guitarra, desplugado, ao estilo Robert Johnson e Bessie Smith.

Ligado à contracultura — é dele o desenho que está na capa do bolachão “Cheap Thrills” (1967), lançado por Janis Joplin —, Crumb curte demais o som dos anos 1920 e 1930. Daí, então, o artista ter achado importante na década de 1980 celebrar os músicos responsáveis pela sua formação. São blueseiros e jazzístas, em suma. E artistas de country também, claro.


		Robert Crumb repassa história da música ancestral do século 20
Crumb retrata história da black music em ilustrações. Foto: Divulgação


O resultado dessa homenagem gráfica foi uma série de três cards coloridos retratando lendas do século 20. Nos anos 2000, o quadrinista reuniu seus desenhos no livro “Heróis do Blues, Jazz & Country” (R$ 89,90), que acaba de chegar às livrarias goianas pela DarkSide Records.

Crumb se esforçou na obra. As ilustrações são belíssimas, os traços captam o espírito de uma época seminal para a música norte-americana, os textos biográficos dos historiadores Stephen Calt, David Jasen e Richard Nevins documentam instrumentistas e bandas fundamentais para a história. “Heróis do Blues, Jazz & Country” vale a grana desembolsada.

Vem mais coisa, porém. Como bonus track, o leitor acessa uma preciosa introdução da lavra do premiado diretor norte-americano Terry Zwigoff, responsável pelo documentário “Crumb” (1994). À época, dizia-se que era o melhor doc já filmado sobre um artista. Quem falou algo nesse sentido foi o então diretor do Festival de Nova York, Richard Peña.

A câmera de Zwigoff persegue Crumb. Os franceses o comparam a Pablo Picasso, mas os norte-americanos — sobretudo os mais reacionários — o rebaixam a um reles misógino, a um desenhista tosco, a um criador de mente perturbada, a um pornógrafo nada sofisticado.

Aquela música era incrível. Os discos geralmente eram muito detonados, furados de tanto usar, cheio de arranhões, mas era uma música fabulosa" Robert Crumb, quadrinista

Seja lá como for, o fato é que Crumb dedica-se ao desenho desde os sete anos. Entre 1959 e 1967, criou seus heróis Fritz the Cat e Mr e, desde então, teve trabalhos publicados em revistas. O artista inaugurou a “Zap”, com uma edição inteiramente dedicada aos seus primeiros, e participou ainda da “Weirdo”, na qual ilustrava textos de Jean Paul-Sartre.

Nesse período, o desenhista emprestava seus traços para a prosa marginal de Charles Bukowski. Ele e o velho safado firmaram forte laço, unindo-se em “Traz Teu Amor para Mim e Outros Contos”. “Enquanto um escreve de forma marginalizada, com personagens expressivos e marginalizados, o outro é um ilustrador que está marcado por suas perturbações com a revolução sexual”, diz o artista visual Rafael Rosa, em pesquisa.

Mestres

Façamos retorno à música, a razão deste texto ser escrito. Em “Heróis do Blues, Jazz & Country”, Crumb retrata lendas do Mississipi, como John Hurt, Son House, Blind Lemon Jefferson, Memphis Minnie, Charley Patton, Jaybird Coleman, Ramblin’ Thomas e Big Bill Broonzy. Dentre os jazzistas, Louis Armstrong, Bix Beiderbecke, Duke Ellington, Sidney Bechet, Fats Waller e Benny Goodman são pincelados pelas cores do desenhista musical.

Também aparece ali a turma do country: Jimmie Rodgers, The Carter Family e Eck Robertson and Family. Alguns grupos há muito esquecidos, como Gid Tanner & the Skillet Lickers, The Happy Hayseeds e Ernest Stoneman & his Blue Ridge Corn Shuckers, têm suas histórias trazidas à tona num notável esforço para manter viva a memória da música.

Na perspectiva da devoção, “Heróis do Blues, Jazz & Country” é uma declaração de amor supremo, como disse o saxofonista John Coltrane naquele álbum publicado em 1965. Parece ser um grito desesperado de Crumb à espera da big band de Duke Ellington e do trompete de Louis Armstrong, da guitarra blueseada de Jimi Hendrix e do soul da Motown.


		Robert Crumb repassa história da música ancestral do século 20
Para Crumb, a música moderna se caracteriza por deixar-se pautar pela pressão da indústria cultural. Foto: Divulgação


Para Crumb, a música moderna se caracteriza por deixar-se pautar pela pressão da indústria cultural. “Não se ganha dinheiro repetindo as velhas coisas do passado”, sentenciou no posfácio de “Blues”, em uma versão publicada no Brasil em 2004. Crumb se entrega a essa forma de blues pelo que há nela de mais subversivo: o espírito ébrio dos uísques, o sexo e o sentimento anti-cristão. Ou seja, tudo aquilo a que os puritanos se enfurecem.

Fã do carinhoso Pixinguinha, Crumb gosta de colecionar discos antigos de 78 rpm.“Li um livro sobre jazz, de 1939, que tinha um capítulo, ‘Procurando Discos’, que falava sobre bater nas portas da vizinhança negra. Eu tinha 18, 19 anos a primeira vez que saí batendo nessas portas, na vizinhança negra em Delaware, onde morava. E aqueles negros pobres ainda tinham velhos gramofones em casa e discos da década de 1920”, disse o quadrinista.

“Aquela música era incrível. Os discos geralmente eram muito detonados, furados de tanto usar, cheio de arranhões, mas era uma música fabulosa. Os bons discos eram poucos, encontrar uma pilha deles em um só lugar era uma experiência eufórica e emocionante, mas rara, é claro”, afirmou em uma entrevista exclusiva ao jornalista e editor Bruno Dorigatti. “Heróis do Blues, Jazz & Country”, portanto, é uma emocionante viagem à black music.

HEROIS DO BLUES, JAZZ E COUNTRY

Páginas: 256

Gênero: Não ficção

Preço: R$ 89,90

Avaliação: bom

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