Foi como ter visto Mozart ou Beethoven. Roger Waters proporcionou as melhores três horas da minha vida e de outras 70 mil pessoas que choraram, se esgoelaram e cantaram no Mané Garrincha, em Brasília, nesta terça-feira, 24. Saí do estádio (Asa Norte, ao lado do Ulysses Guimarães, no Plano Piloto) com a certeza de ter assistido a um dos mais fascinantes concertos existentes. O som que saía da caixa, por si só, me entorpeceu. Fiquei chapado.
Indigesto? Ora, Waters ofereceu um espetáculo musical, visual, cinematográfico, poético e teatral capaz de nos levar a refletir sobre o culto à arma, à desigualdade social, aos muros criados em nossa cabeça e ao horror a que os regimes totalitários submetem a humanidade. Bonito? Bom, quem teve o privilégio de ouvi-lo em bolachões, compact disc ou no streaming sabe do que estou falando. Emocionante? Meus amigos, acho que dispensa comentários.
Em toda a primeira parte do concerto, o ex-Pink Floyd exibiu no telão imagens de poderosos como Ronald Reagan (“criminoso de guerra por ter financiado na Nicarágua a milícia de extrema direita Contras”) e Barack Obama (“criminoso de guerra por ter popularizado os ataques a drones”). Às 21h15, antes de iniciar o espetáculo, Waters já avisou: “se você é um daqueles que diz: ‘eu amo o Pink Floyd, mas não suporto a política do Roger’, você pode se retirar para o bar agora. Obrigado.” E adivinhe só: ele foi ovacionado.
A primeira data da This is not a drill pelos palcos brasileiros começou com “Comfortably Numb”, música eternizada no elepê duplo “The Wall”, na qual Waters optou por suprimir o belo solo de guitarra tocado por David Gilmour. Caso você não saiba, ambos se odeiam e, não raro, é possível vê-los se alfinetando pela imprensa anglofônica. Um ou outro fã não entendia, irrequieto, a óbvia retirada das notas alcançadas por Gilmour em sua Stratocaster. “Não acredito”, lamentou um deles, que passou três horas desenhando acordes ao vento.
Lá pela terceira e quarta músicas, “Another Brick in The Wall, Partes 2 e 3”, o público passou a delirar. Uns berravam, outros abriam os braços, como se estivessem abraçando o paraíso, mas todos sabiam a dimensão histórica dessa interpretação: é uma ferina crítica ao sistema educacional inglês, cuja especialidade consistia em moer sonhos, fato este levado ao cinema pela câmera do diretor Alan Park - com Bob Geldof, uau!, interpretando Pink. Achei ótimo estar vivo para assistir a história do rock sendo cantada a poucos metros de mim.
“The Powers That Be” e “The Bravery of Being Out of Range” demonstraram como é, até hoje, revolucionário o som construído por Roger Waters. Depois dessas duas, entrou “Have a Cigar”, rock de riff esperto, groove atraente e bateria tocada no contratempo gravado no disco “Wish You Were Here”. Chorei, me deixei levar pelas lágrimas que escorriam: Waters homenageou Syd Barrett, personagem essencial à história do Pink Floyd. O grupo gravou, com Barrett, o disco “The Piper at the Gates of Dawn” - clássico da psicodelia inglesa.
Conhecido pela forma poética com que se expressa nas suas letras, Waters merece reconhecimento pelo sentimento depositado nas telas do piano. Seus acordes transmitem emoção e, claro, adicionam um tempero a mais para composições já belas por vocação de seu genitor. Como poucos, o músico coloca as escalas musicais a serviço das palavras, numa combinação artística que o insere dentre os mais brilhantes compositores do século passado.
Homenagem
Isso tudo ocorreu nos loucos anos 1960. Barrett e Waters eram amigos. “Você vive seus sonhos”, disse o lendário baixista, num pequeno poema mostrado no telão. Aí começou aquele fraseado inconfundível tocado no violão: “Wish You Were Here”. Lembram que confessei aqui meu inevitável choro nessa hora? Pois é, eu soluçava - e a memória me transportava à adolescência, quando Pink Floyd servia de combustão aos meus ímpetos de rebeldia. A próxima canção, lindérrima, foi “Shine on You Crazy Diamond (parts VI-IX)”.
Essa música demonstrou que Waters, de fato, sempre priorizou cercar-se de músicos virtuosos. O guitarrista Dave Kilminster, por exemplo, esticou bends (nota erguida para a casa de cima), apresentou licks de blues (ideias para solo) e se expressou com segurança em seu instrumento. Assim como Jonathan Wilson (guitarra), Jon Carin (teclado, guitarra e vocais), Gus Seyffert (baixo e voz), Robert Walter (teclado), Joey Waronker (bateria), Shanay Johnson e Amanda Belair (vocais) e Seamus Blake (saxofone). Que sax, aliás: matador!
Waters seguiu expondo violações dos direitos de indígenas, palestinos, negros e transexuais, se referindo a inquilinos da Casa Branca como criminosos de guerra, criticando as estruturas que fortalecem o capitalismo e pedindo para que Putin e Zelenski se sentassem num bar para conversar. O bar, inclusive, era uma menção à nova música do compositor, apresentada no show. Marielle Franco, homenageada nos concertos da turnê Us + Them, em 2018, foi citada pelo músico ao lado de homens e mulheres por causa do ativismo político e social.
Na canção “Sheep”, gravada no elepê “Animals”, uma ovelha passou pela plateia que estava na pista. Então Waters e sua banda saíram de cena, mas para a estrela da noite trocar de roupas: agora era a vez de encarnar Pink. Bandeiras que faziam referência ao Terceiro Reich foram hasteadas. Roger Waters, ou Pink, recebia uma injeção para ir ao show, como sugere a letra de “In The Flash”, um rock de guitarras distorcidas e compasso agitado na bateria. Será que vai rolar na íntegra “The Wall”, o disco cujo repertório ajudou a canalizar sentimentos de rejeição que estavam em Waters e sua antipatia a autoridades com vocação nazifascista?
Tocou, mas só mais uma faixa: “Run Like a Hell”. Depois, se sucederam “Déjà Vu”, “Déjà Vu (Reprise), “Is This Life We Really Want”, até que veio uma sequência indescritível, composta por “Money” (Waters demonstrou por que é considerado o 22° melhor baixista da história, tocando uma bela linha de baixo e preparando a cama para o solo de sax), “Us And Them”, “Any Colour You Like”, “Brain Damage” e “Eclipse”. Esse encadeamento demonstrou que poucas coisas na história da cultura pop têm a força do Pink Floyd.
Foram as últimas cinco do “The Dark Side of The Moon”, ou seja, quase ouvimos essa obra inteira. Pais saíram do Mané Garrincha abraçados aos seus filhos, avós e netos conversavam sobre o que tinham visto e eu, acompanhado pela minha esposa, como tantos outros ali, entendi que Waters é uma espécie de Mozart desses tempos que vivemos. Sorte a nossa.
Agenda de shows
28/10 – Rio de Janeiro – Estádio Nilton Santos / Engenhão
01/11 – Porto Alegre – Arena do Grêmio
04/11 – Curitiba – Arena da Baixada
08/11 – Belo Horizonte – Mineirão
11/11 – São Paulo - Allianz Parque - esgotado
12/11 – São Paulo - Allianz Parque
Veja o set list
Comfortably Numb
The Happiest Days of Our Lives
Another Brick in the Wall, Parte 2
Another Brick in the Wall, Parte 3
The Powers That Be
The Bravery of Being Out of Range
The Bar
Have a Cigar
Wish You Were Here
Shine On You Crazy Diamond (Partes 6 a 9)
Sheep
In the Flesh
Run Like Hell
Déjà Vu
Déjà Vu (reprise)
Is This The Life We Really Want?
Money
Us and Them
Any Colour You Like
Brain Damage
Eclipse
Two Suns in the Sunset
The Bar (reprise)
Outside the Wall