Cultura

Romance dilui fronteiras entre ficção e não ficção com José Saramago personagem

Marcus Vinícius Beck

Publicado em 22 de fevereiro de 2022 às 16:14 | Atualizado há 3 anos

Em
julhos literários enfumaçados na memória e imprimidos nos “Cadernos de
Lanzarote”, o escritor português José Saramago dizia que a vida de cada um de
nós contamos em tudo quanto fazemos e dizemos, nos gestos, na expressões, nas
feições da face, na maneira com a qual nos sentamos e andamos e olhamos e
falarmos e transamos e comemos e viramos a cabeça e apanhamos um objeto caído
no chão. Bem ou mal, rodeados de sinais, nós criamos um sistema onde nos
submergimos.  

Nos
anos 1990, o caminho do jovem escritor José se cruza com o do xará, um tal de Saramago,
autor do romance “Histórias do Cerco de Lisboa”, e que foi contratado preparar a
biografia do mestre. Como dois amigos que se encontram sem combinarem, eles se
topam em feiras de livros ou reuniões com o próprio biografado e viram o ponto
nevrálgico de uma história cujas fronteiras vão além dos limites entre o que
conhecemos como realidade e ficção, diluindo-se no caldo da narrativa.

Aos 47
anos, o romancista José Luís Peixoto, conterrâneo considerado por Samarago “uma
das revelações mais surpreendentes da literatura portuguesa”, exibe na abertura
de “Autobiografia”, obra lançada no Brasil pela Companhia das Letras, uma
linguagem elevada ao vigor, com a qual manda, como se não lhe restasse outra
saída a não ser martelar o verbo, a síntese de um estilo elegante, prazeroso e
sedutor. “José Samarago escreveu a última frase do romance”, afirma ele, para
nossa surpresa.

A exemplo de uma lente meio Henri Cartier-Bresson, a caleidoscópica “Autobiografia” pinça para o leitor um retrato das idiossincrasias de um inexperiente artista das palavras incumbido de uma tarefa inglória: apurar e escrever a biografia de Saramago. Precisa entregar 200 páginas. Biografias são histórias rigorosas. Não há espaço para florear, ou, para ser mais preciso, inventar. E, ao arregaçar as mangas para encontrar as palavras necessárias, José questiona-se: existe um Saramago verdadeiro? Sim. São infinitas as possibilidades de José Saramago, para compreendê-lo? Óbvio.

Neste romance, ao ficcionalizar o Nobel, Peixoto apresenta uma forma para olharmos ao escritor com as nossas próprias lupas, dimensionando o autor revolucionário que foi e suas preocupações humanas. Para conceber textos com essa natureza, é comum que se parta de informações que foram levantadas antes, mas sem esquecer da maneira na qual assimilamos a natureza dos seres humanos. Põe-se aí também o detalhe de Saramago narrador, a voz de todos os quarenta e poucos livros, então cabe dizer que estamos diante de uma obra que espelha o mundo saramaguiano. 

Cronista

Entre
1968 e 1972, Saramago publicou crônicas para o jornal “A Capital” e o semanário
“Jornal do Fundão”. Nos textos, como é possível perceber em “Retrato de
Antepassados”, evoca a memória da genealogia e da infância. Em outros, por
motivos políticos que também viraram literatura, lembra que ficou desempregado
em 49, porém, contando com a ajuda de um antigo professor, encontrou um
trabalho em metalúrgica. Ao mundo nas letras, dizia, só ingressara no final dos
anos 50, quando passou a ser funcionário da editora Estúdios Cor, não como
autor, e sim na produção.

Nascido em 1922 em Azinhaga, Saramago traduziu Jean Cassou, André Bonnard, Tolstoi, Baudelaire, Henri Focillon, Jacques Roumain, Hegel. Dedicou-se à crítica literária de maio de 67 até novembro do ano seguinte. A essa altura, já tinha publicado “Os Poemas Possível”, coletânea que marcou o regresso do escritor para a literatura. Nos anos 1970, separado da esposa, tornou-se editorialista e editor de cultura do diário vespertino Diário de Lisboa. É nesse período em que realiza leitura precisa dos últimos anos do salazarismo, em textos sob o nome de “As Opiniões”.

Embora o título seja “Autobiografia”, não há nenhum elemento que faça da obra em si uma retrato sobre o próprio Luís Peixoto. Pelo contrário, como diz o autor numa entrevista ao jornalista Matheus Lopes Quirino, do jornal O Estado de S. Paulo, que você poderá ler na íntegra aqui, escrever sobre o outro, aquela pessoa que não conhecemos, é de certo modo procurá-lo em nós mesmo: em todo momento nós nos procuramos em Luís Peixoto.

“As
lembranças mais fortes são os encontros pessoais, algumas conversas, alguns
momentos. Para mim, ainda antes dos meus 30 anos, ou logo depois, estar sob o
olhar direto de Saramago, receber as palavras que me dirigia, era algo que me
inibia, a que nunca me habituei completamente, mas que, ao mesmo tempo, sentia
como um reconhecimento da sua consideração. Entre esses momentos, os melhores
eram aqueles em que sentia o seu entusiasmo, quando os seus olhos brilhavam”,
afirma o autor.

Com uma prosa detalhada e carregada de lirismo, dialogando com Saramago em “As Pequenas Memórias”, José Luís Peixoto nos possibilita a conhecer Saramago por meio de uma água que se move e onde imaginamos que tudo pode voltar a ser o que sempre foi, com a literatura do romancista Nobel nos fazendo sentir a madeira do barco rústico que nos conduz pela alma do autor. “Deixei encalhado algures no tempo”, declarou o escritor.

O mundo, sem dúvida, é um lugar melhor, porque tem o texto de Saramago.

Autobiografia

Autor: José Luís Peixoto

Gênero: Ficção

Editora: Companhia das Letras

Preço: R$ 69,90


Leia também

Siga o Diário da Manhã no Google Notícias e fique sempre por dentro

edição
do dia

Impresso do dia

últimas
notícias