‘Seguindo Todos os Protocolos’ retrata tempo em que transar era arriscado
Marcus Vinícius Beck
Publicado em 14 de julho de 2022 às 14:10 | Atualizado há 4 meses
Francisco
está angustiado. Há dez meses, com um vírus do qual se sabe pouco e vacinas são
itens incogitáveis, ele não transa. Mas como transará? O caos se instaurou:
pessoas mascaradas andam nas ruas, borrifadores de álcool em gel à prontidão
para esguichar sacolas que chegam do mercado e uma sensação de quarentena interminável.
Quem não fica estafado? Quem quer sexo? Eu e você queríamos – provavelmente.
Para
falar a verdade, a pandemia ainda não acabou. Mas os corpos se empilharam numa
quantidade tão grande que parece tudo dentro do padrão. Seiscentos mil mortos?
Quase setecentos? A morte iminente não causa espanto. E, apesar disso, já é
possível arriscar pitacos sobre o passado pandêmico, em seu auge mortífero e em
sua fadiga sanitária, com o auxílio de um passado recente, em que trepar
representava um perigo à saúde e, sem muitas alternativas, restava-nos o
isolamento.
Entre
risadas sobre práticas desastrosas e outras até cautelosas, “Seguindo Todos os
Protocolos”, longa-metragem que está em cartaz no Cine Cultura (Praça Dr. Pedro
Ludovico Teixeira, 2, St. Central), apresenta – com algum senso de humor – os
cuidados ao sair de casa, a necessidade de desinfetar compras de supermercado e
se a máscara está ou não bem presa à cara. Saio com uma? Duas? Melhor, sair pra
quê?
Com cada
espectador reagindo à sua maneira, o filme parte de Chico, personagem
interpretado por Fábio Leal, que também dirige a produção. A cada dia, ele parece
ficar imerso num marasmo e numa ansiedade que, desesperadoramente, não tem um
sinal sequer de quando, ou se um dia, vai arrefecer. Nessa solidão medonha e
pouco saudável, porém necessária para puxar o freio de mão do coronavírus, o
personagem sente uma necessidade de contato com o outro e, sobretudo, em
transar, em sentir o tesão lhe correndo as veias e em ouvir a música do prazer
lhe entrando aos ouvidos.
O rapaz,
de classe média, tenta dar um jeito nisso de forma segura, recorrendo à
pornografia, claro. E, depois de tanto buscar aliviar o tesão com as mãos, opta
por um relacionamento virtual. Ainda assim, alguma coisa lhe falta, e nem é
muito difícil descobrir o que é: um orgasmo com alguém que, assim como ele,
esteja tomando todas as medidas de prevenção ao vírus. Ocorre-lhe apelar para
um ex-ficante, que na pandemia não teve escolha a não ser tornar-se um
trabalhador precarizado, mais um!
A
seguir, pinta na história um médico, categoria profissional que, para Chico,
toma precauções contra a covid-19 de forma bem melhor que os outros. Como o
espectador já nota a essa altura, o protagonista da película age de forma
pragmática, ao ponto de não se deixar levar por elogios empolgados pós-foda. Existe
nele uma pulsão, às vezes até com resquícios paranoicos, em não sair
disseminando o coronavírus. E, mesmo assim, ele consegue lidar com questões
delicadas com admirável senso de humor.
Temor
coletivo
Premiado
com o troféu Helena Ignez na Mostra de Cinema de Tiradentes, em linhas gerais,
a trama acerta ao propor uma crônica sobre a maior catástrofe de saúde coletiva
desde a Gripe Espanhola, pandemia que ceifou milhares de vidas durante a
Primeira Guerra Mundial. “Seguindo os Protocolos” funciona bem como uma obra
cinematográfica em que, tendo em vista o contexto nela retratado, havia um
temor coletivo, medo de um governo negacionista, receio em tocar a mão do
outro, terror em beijar aquela pessoa que faz palpitar o coração e a pele ficar
toda arrepiada.
Fábio
Leal também obtém expertise quando propõe enfrentamento ao medo da morte. Mas
não é nada piegas: é por meio da ficção, com uma pitada tragicômica e outra realista,
que “Seguindo os Protocolos” atinge seu ponto alto. Além de fundir esses
elementos narrativos, a estética fotográfica adotada por Gustavo Pessoa, em
ângulos nos quais conseguiu enquadrar até Maria Bethânia com os peitos de fora
numa liberdade cerceada por um vírus, aposta em cores mais escuras. Afinal, só
a turma da positividade tóxica conseguiu ver o lado bom das coisas nos últimos
dois anos.
Em 1h10, indo da comédia ao drama, “Seguindo os Protocolos” acerta ao não apelar para a cagação de regras ao falar sobre um assunto que acompanhou os solteiros na pandemia e, até mesmo, os fez quase entrar num colapso libidionoso: o sexo. E também, como não poderia deixar de mencionar, na obra, os dois se entendem, como se um deles propusesse o caminho e o outro fosse atrás. Percebe-se que ambos mandam bem na arte do improviso. É um filme, para fechar, que será interessante assistir daqui dez anos: será um documento e uma nova chance de olhar ao passado.