Fernanda Takai não canta, Fernanda Takai balbucia canções que te fazem viver mais, às vezes sussurra algo sobre o tempo, tanto tempo, mano velho. Canta como se oferecesse um acalanto, um murmuro apaixonante. Pop rock desarrumando sentimentos, desordenando sensações, desarranjando emoções de quem se atreve a lhe dar ouvidos.
Fernanda, voz da banda mineira Pato Fu, chega aos nossos ouvidos assim, um tanto afável, com ternura. Faz isso no disco “Rotorquestra de Liquidificafu”, já disponível nas plataformas de streaming. Cicia hits e alterna-os a faixas pouco conhecidas do público, numa tentativa de permitir que essas composições – por que não? – tenham nova chance.
Dezessete canções foram rearranjadas. Fernanda (voz, guitarra e violão), John Ulhoa (voz, guitarra e violão), Ricardo Koctus (voz e baixo), Xande Tamietti (bateria) e Richard Neves (voz, teclado e acordeon) se juntaram à Orquestra de Ouro Preto, sob regência do maestro Rodrigo Toffolo, que já gravou com Alceu Valença e criou o concerto Beatles Sinfônico.
Dentre as músicas incluídas no roteiro do show, o público pode esperar “Ando Meio Desligado” (Arnaldo Baptista, Sérgio Dias e Rita Lee), “Spoc” (John Ulhoa, 1995), “Água” (John Ulhoa), “Perdendo Dentes” (John Ulhoa e Fernanda Takai), “Eu” (Frank Jorge, Marcelo Birck, Alexandre Ograndi e Carlo Pianta) e “Simplicidade” (John Ulhoa). Há ainda hits como “Canção Pra Você" (John Ulhoa) e “Sobre o Tempo” (John Ulhoa).
Em 2022, a orquestra percorreu o interior de Minas Gerais com o Pato Fu celebrando os 30 anos do grupo. A banda surgiu no cenário brasileiro com o disco “Rotomusic de Liquidificapum”, publicado pela Cogumelo Records, em 1992. Gravado no estúdio Ferreti, em Belo Horizonte, capital mineira, apresentou letras complexas e sonoridade experimental.
A faixa-título abre “Rotorquestra de Liquidificafu”. Pato Fu se mantém elétrico: comentários de guitarra expressam sonoridade plugada, cordas criam harmonia sinfônica, três ou quatro andamentos rítmicos. Zelosos com a comida que está na panela, Ricardo e Richard se entendem na cozinha entre grooves e baquetas, cadência e ataque, som e fúria.
Conforme Rodrigo, a música clássica tem “muitas regrinhas”. Diz, todavia, que união entre linguagem pop e erudita pode atrair público para assistir a concertos de Bach ou Beethoven. “O disco capturou toda a aura que envolveu essa conjunção e transmite toda a excelência, a irreverência e a versatilidade que marcam a trajetória das duas formações”, resume.
Na entrevista que se segue, Fernanda Takai, 52, fala sobre o desafio de colocar a orquestra no espaço do rock, relembra percalços vividos nesses 30 anos de carreira e diz que precisa de patrocínio para se apresentar com esse show em capitais como Goiânia. A seguir, leia íntegra:
Diário da Manhã – Você sempre buscou novidades. Já trabalhou com Andy Summers (ex-The Police) e cantou Nara Leão e Tom Jobim. Agora, leva linguagem do rock à orquestra. O artista – em sua opinião – deve ir além de uma fórmula pré-definida?
Fernanda Takai – Depende da personalidade do artista. Alguns ficam bem confortáveis em encontrar um jeito de fazer as coisas e viver assim pra sempre. Nossa banda, Pato Fu, e depois eu mesma em carreira solo, a gente tenta fazer. Quando mais surpreendente for um projeto pra nós, também vai ser assim pro público. Mesmo que a gente faça um álbum ou um projeto completamente maluco, certamente vai ter um lado pop que servirá para os fins que são mais populares, de tocar em rádio, de repente a música ir pra um filme ou pra uma novela, mas sempre vai haver um estranhamento. Até mesmo um projeto que, à primeira vista, é tão fofinho, como “Música de Brinquedo” (2010), não era bem assim.
Não mexer naquilo que deu certo. Não sou contra e nem a favor. Do meu lado, sou super a favor de ter boas ideias Fernando Takai, cantora e compositora
Só virou fofinho porque a gente apresentou isso de forma muito competente. Ninguém diria que fazer "Música de Brinquedo" fosse ganhar disco de ouro, fazer turnê de mais de cinco anos. Isso está na nossa personalidade, mas compreendo completamente artistas que querem tocar sempre mesmo repertório e até com mesmos músicos. Não sou contra e nem a favor. Do meu lado, sou super a favor de ter boas ideias.
DM - A música que abre ‘Rotorquestra de Liquidificafu’ resume isso que você falou: num primeiro momento, é fofinha – mas tem umas viradas no andamento, guitarra distorcida, etc. Como foi construir os arranjos com a Orquestra de Ouro Preto?
Fernanda – Ó, o Paulo Malheiros, que fez os arranjos de corda pra orquestra e de percussão, foi muito em cima dos nossos arranjos originais. Que a gente tinha feito pros álbuns de estúdio. Ele construiu ali a sonoridade da orquestra em torno do nosso núcleo. O que é bem legal desse álbum é que a gente não suavizou. Acho que a orquestra vem do jeito dela, vem nos espaços que a música tem pra se construir um arranjo de orquestra sem descaracterizar nosso pop rock. Não é um disco de orquestra pra ser romântico. Ou pra ser soft, que vai alcançar todo mundo. Vem um disco que é bem ousado. Até o repertório: não têm só sucessos. Há canções conhecidas. Mas há umas músicas esquisitas.
DM – Isso é até algo em que eu estava pensando enquanto ouvia o disco: repertório mescla hits com canções, digamos, do lado B da discografia do Pato Fu. O que a banda levou em consideração para escolher as músicas que entrariam no disco?
Fernanda – Essas canções, acho que a gente pode até citar músicas como “A Hora da Estrela”, “Ninguém” e “Eu Sou o Umbigo do Mundo”, são canções que os fãs conhecem – aqueles fãs que têm o disco em casa ou que conhecem todos os lados do Pato Fu. Não foram músicas de sucesso, realmente. Mas essas canções têm espaço e sonoridade importantes. A gente entendia que, com a Orquestra de Ouro Preto, essas canções talvez ganhassem uma nova chance no mundo.
Talvez as pessoas comecem a olhar pras elas, ouvi-las, de um outro jeito que tivessem passado despercebidas nos álbuns. Acho que elas ganharam muito com a orquestra. Durante toda nossa carreira, a gente tinha vontade de fazer, de ter uma orquestra tocando, mas a gente não tinha orçamento. Só agora, aos 30 anos de carreira, a gente pôde finalmente ter uma orquestra parceira e realizar esse sonho de fazer canções que ganham muito com a presença das cordas e da percussão.
A gente não sabia quando iria voltar. Foi tudo ao vivo. A Ouro Preto tocando na igreja. Foi um negócio muito emocionante. E deu um nervoso pra fazer. Tenho relação com a Orquestra há muito tempo. Fernanda Takai, cantora e compositora
DM – Como o Pato Fu chegou até a Orquestra de Ouro Preto?
Fernanda – Acho que a primeira coisa foi a minha relação com a Orquestra Ouro Preto. A primeira vez que cantei com a Ouro Preto foi em 2014. Vai fazer dez anos que a gente se frequenta, digamos assim. Já participei de alguns shows cantando Beatles com eles, cantando Tom Jobim. Fiz um disco só de Tom Jobim, “O Tom da Takai” (2018). Tem uma versão desse show com a Orquestra Ouro Preto. É um show solo meu que rodou bastante o interior de Minas. Na época da pandemia, a gente fez uma live muito bonita direito de Ouro Preto, na Basílica do Pilar. Foi uma das primeiras lives. A gente não sabia quando iria voltar. Foi tudo ao vivo. A Ouro Preto tocando na igreja. Foi um negócio muito emocionante. E deu um nervoso. Tenho relação com a Orquestra há muito tempo.
DM - O que o maestro sugeriu durante a seleção do repertório?
Fernanda - Rodrigo Toffolo é super fã de Pato Fu. Ouvia a banda quando era estudante, em Ouro Preto. A família toda dele é de lá. A gente conversou e falei: “poxa, maestro, você já fez o ‘O Tom da Takai’, agora tem que fazer Pato Fu”. Ficou esse sonho, sabe? Um dia ele falou: “ó, acho que a gente vai conseguir fazer o Pato Fu. Então, vamos selecionar repertório”. Sabe o que ele pediu? “Rotomusic de Liquidificapum”. Justamente a música mais esquisita, que abre nosso primeiro disco, mas é a que ele escutava nos tempos de estudante e era sentimentalmente muito importante. É desafiador botar orquestra nela.
DM – Me lembra rock progressivo, a música.
Fernanda – É?Acho que seria raro pra um artista fazer um disco com orquestra e botar uma música que tem mudança de andamento o tempo todo. Tem uma colagem ali: “Rotomusic…”, "Flintstones". Foi muito legal o maestro e a orquestra não terem medo de fazer uma coisa que todo mundo está esperando. Seria muito óbvio começar um disco com “Sobre o Tempo” ou “Perdendo Dentes”. A gente quis fazer a coisa mais estranha que poderia ser feita junto com a orquestra, que seria essa música, “Rotomusic de Liquidificapum”. Foi pedido do maestro. Acho que o maestro é mais doido que a gente (risos).
DM – Olhando pelo retrovisor, quais foram as maiores dificuldades enfrentadas pela banda nestes 30 anos para driblar certos ditames da indústria fonográfica?
Fernanda – Dentro da indústria, quando a gente deixou de ser independente aqui em Minas e fomos para o Rio de Janeiro, na BMG, a gente foi muito feliz com quem trabalhou conosco. Teve muita liberdade, muito apoio no projeto Pato Fu. E do que jeito que ele era. A gente conseguiu dar de volta pra gravadora bons resultados: discos de ouro, turnês importantes, várias músicas em novelas e séries. Se configurou uma relação saudável.
DM – Como foi a saída da BMG?
Fernanda – Acho que o mais difícil foi sair da BMG pra mudar de gravadora. No meio do caminho, a gente ficou sem nenhuma. Rompemos contrato com uma grande, e a gente não assinou com a outra - que esperávamos. Voltamos pra cena independente, em 2003 pra 2004. A gente se perguntava: “será que a gente consegue manter o Pato Fu de novo sem ter uma gravadora?”. Ficou esse mistério na nossa cabeça. Agora, passado esse tempo todo, só posso te dizer que a gente teve muito êxito em ter um passado indie, metade da vida numa mejorie e seguindo em frente indie outra vez, com a autonomia de ter estúdio em casa.
DM – Vocês passaram por algumas crises, desde a pirataria de rua até o MP3.
Fernanda – A gente passou pela crise do MP3, da pirataria de rua – antes do MP3. Acho que a gente é uma banda sobrevivente dos tempos de vacas super gordas e outros de vacas super magras. Sobrevivemos fazendo a música do jeito que a gente queria. Vou te dizer que o caso do Pato Fu é um caso muito raro. O fato de eu ter carreira solo, por exemplo. É quase que improvável ter os dois simultaneamente - banda e projeto paralelo. Acho um caso a ser estudado, o Pato Fu.
DM – Não posso deixar de perguntar: há alguma possibilidade de a gente ver esse show com a Orquestra de Ouro Preto em Goiânia?
Fernanda – Nossa! A gente tem muita vontade de fazer as capitais. A gente tinha feito só interior de Minas. Foram nove shows. A gente quer muito levar o show pras capitais. A primeira vez que vamos tocar fora de Minas vai ser sábado, dia 22, em Copacabana. Fazer esse tipo de espetáculo depende muito de patrocínio. Geralmente, os shows são na praça, de graça. Ou em teatros grandes, onde haja receita melhor. O que a gente espera é que, a partir de Copacabana, que seja muito bem sucedido!, a gente possa viajar pelo Brasil. Eu, fã de outros artistas, gostaria muito de ver um show assim.