Quando a crítica começou a falar de “Os Fabelmans”, filme que chega na segunda, 6, aos cinemas goianienses, sabia-se que a obra seria um passo adiante na carreira de Steven Spielberg. Isso porque alguns a definem como errática, talvez por ser muito lembrada pelo “E.T” (1985) e “Parque dos Dinossauros” (1993), enquanto outros já recordam-se da precisão observada em “The Post”, longa que se passa na redação do jornal “The Washington Post” ao retratar a batalha do editor Ben Bradlee em expor segredos governamentais dos EUA.
Com “Fabelmans”, todavia, o que se vê é a paixão do diretor pelo cinema. O enredo reconstrói, sem abrir mão da fantasia, do sonho e da beleza, o momento em que Spielberg percebeu o amor pelos filmes. É como se, na película, ele estivesse fazendo ajuste de contas com o passado, com o audiovisual e com sua vida. Poesia cinematográfica lapidada.
Uma vez na sessão, é difícil não ficar tocado. Arriscaria a dizer, sem medo, ser complicado não se emocionar. O filme, logicamente, está longe de ser perfeito e, em certos momentos, nota-se pontos baixos. Só que os momentos admiráveis conseguem a façanha de ofuscarem as falhas narrativas e estéticas. Quem conhece François Truffaut desenha paralelos entre Antoine Doinel (alter-ego do diretor francês) e Sammy Fabelman (inspirado livremente em Spielberg).
Ao se encontrar com Martin Scorsese, diretor dos clássicos “Taxi Driver” (1976) e “Os Bons Companheiros” (1990), em Nova Iorque, durante exibição de “Os Fabelmans” no DGA Theatre, Spielberg confessa sempre ter sido reservado em relação à vida privada e nunca ter compartilhado com o público histórias intimistas. Mas a ameaça existencial provocada pela pandemia o convenceu a, enfim, apostar num filme com viés pessoal e, claro, beleza subjetiva.
“Minha mãe e eu guardamos um segredo por muito tempo, e ela sempre me dizia: ‘Nossa, Steve, esse seria um filme realmente incrível. Por que você não faz isso algum dia?’ Então, ela veio até mim de um lado e (o roteirista e dramaturgo) Tony Kushner, que ouviu as histórias e estava realmente pressionando por isso, de outro”, revelou Spielberg.
Em “Fabelmans”, quem interpreta o cineasta adolescente Sam Fabelman é o ator Gabriel LaBelle, que atuou em “Gigolô Americano” (2022) e “Dead Shack” (2017). Já Michelle Williams, indicada ao Oscar de Melhor Atriz por “Blue Valentine” (2010), e Paul Dano, rosto conhecido por “The Batman” (2022), fazem os pais do jovem. Como são bons artistas, os três estão bem em cena, mas um dos melhores momentos, sem fugir à regra, cai na conta de Sam.
Ele recria cenas de tiroteio para um pequeno faroeste inspirado em “O Homem que Matou o Facínora” (1962), de John Ford, um dos maiores artistas de Hollywood no século 20. Mas não pararam por aí as referências cinéfilas: ao descobrir que a mãe tinha um caso com o tio, que não era exatamente da família, retornamos a 1974, mais especificamente a “Louca Espada”, obra que marcou o que ficou conhecido, nos anos 70, como Nova Hollywood.
Rigor estético
Esse filme, vale destacar, é dirigido por Spielberg. E aqui há consenso na crítica: a sequência da descoberta é filmada com rigor estético pouco visto na obra spielberguiana. A câmera, para usar adjetivo do crítico Sérgio Alpendre, está “sublime”. Remete a “Blow Up - Depois Daquele Beijo” (1966), uma das grandes criações de Michelangelo Antonioni. Muito se exige do espectador, em termos de repertório cinematográfico, nas 2h31 de “Os Fabelmans”.
Lá em Nova Iorque, ao ser indagado por Martin Scorsese sobre a origem do longa, Steven Spielberg afirmou que os sentimentos de perda e solidão, que cresceram nele após a morte dos pais, o levaram a refletir a respeito da vida. O roteiro foi redigido a quatro mãos, dele e Kusher. Mas daí até ser filmado foram outros quinhentos e Spielberg, ainda no bate-papo com Scorsese, disse que já se daria por feliz ao guardar o texto, a sete chaves, na gaveta.
“A covid me deu muito tempo para pensar sobre o caso. E especialmente quando a pandemia estava muito ruim, no momento em que perdemos 500 mil americanos, sem falar em milhões em todo o mundo”, contou o cineasta, durante conversa no DGA Theatre, em Nova Iorque, ocasião na qual o filme foi exibido pela primeira vez ao público.
Steven Spielberg carrega consigo a responsabilidade de representar desde os anos 70 nova face da indústria hollywoodiana. Embora Brian De Palma e Martin Scorsese tenham dito que gostariam de fazer sucesso desde seus primeiros filmes, quem mais perseguiu essa ideia foram, além do próprio Spielberg, os companheiros Francis Ford Coppola e George Lucas. Se ele fez sucesso com entretenimento barato e nada artístico, também dirigiu produções marcadas pelo drama pesado, como “A Cor Púrpura” (1985) e “A Lista de Schindler” (1993).
No final das contas, como todo cineasta relevante, Spielberg quer mesmo é sentar-se no divã fílmico para analisar a si próprio. Isso tem tudo, como a história do cinema mostra, para dar certo. Bons filmes se vislumbram nos próximos. A esperar para ver se isso irá, de fato, se concretizar.