Tremendão batalhou para popularizar rock no Brasil
Marcus Vinícius Beck
Publicado em 23 de novembro de 2022 às 16:50 | Atualizado há 2 anos
O cantor e compositor Erasmo Carlos, que partiu ontem aos 81 anos após idas e vindas do hospital nos últimos dias, batalhou desde os anos 1960 para popularizar no Brasil a música rebelde consagrada por Little Richards e Elvis Presley. Assim que sentiu o vigor desse som entrando no ouvido, em que o contrabaixo alto marcava o tempo como se fosse o ritmo do coração, chegou à conclusão que precisa injetar boas doses de rock ´n´roll na veia.
Graças a essa escolha, Erasmo ensinou ao Brasil a maneira na qual se toca rock. Por seis décadas, driblou as armadilhas do gênero cantado em Língua Portuguesa, cultivou uma discografia com obras celebradas, transitou pelo samba nas ruas de Ipanema, declarou-se – ao lado de Marisa Monte – mais um na multidão e revisitou canções da Jovem Guarda cantadas pelo irmão Roberto Carlos e pela irmã Wanderléa. Era como se ensaiasse o adeus.
Com riffs vigorosos e som rolando no último volume da porra-louquice jovem, Erasmo dizia, em “O Futuro Pertence à… Jovem Guarda”, derradeiro disco lançado no ano passado, que levava a vida chorando pelo mundo, talvez até tivesse desgosto profundo, então resolveu procurar na memória, mas não se lembrou e não encontrara nada. “Nasci para chorar”, canta o Tremendão, em “Nasci Para Chorar”, famosa na voz de Roberto.
A cada disco, o músico abraçava o novo. Com “Erasmo Carlos e Os Tremendões” (1970), após o fim da Jovem Guarda, adotou o visual de galã amadurecido do movimento que encabeçara junto com Roberto e Wanderléa, entre 1965 e 1968. Foi nesse disco, aliás, que começou a experimentar possibilidades musicais, criando canções emblemáticas, como o samba-rock “Coqueiro Verde” e o folk-existencialista “Sentado à Beira do Caminho”.
Em “Carlos, Erasmo”, já rompido com o movimento que revolucionou o comportamento jovem nos anos 1960, o Tremendão apontou os caminhos a serem trilhados pela música brasileira nas próximas décadas. O repertório é costurado por letras em sintonia com o Brasil daquele tempo, um país fardado, amordaçado e acovardado. Em “Gente Aberta”, por exemplo, ele e Roberto já direcionavam olhar para a falta de amor entre as pessoas: “eu não quero mais conversa/ com quem não tem amor/ gente certa é gente aberta.”
Pá de cal
Nesse elepê, joga ainda a pá de cal na fase rebelde e adolescente que lhe colocou sob os holofotes na década anterior. “Gravei músicas de experimentação, de mudança, para prever a minha. Não fiz nada intencional”, disse Erasmo ao Diário da Manhã, num bate-papo que durou cerca de duas horas. Pé no chão, confessou ainda não imaginar que, anos depois, o aclamado disco de 1971 seria objeto de culto dos fãs e ouvido por gerações que o descobrem e, lógico, passa a amá-lo.
O fato é que, seja com canções suas ou de Caetano Veloso, Taiguara e Jorge Ben (ainda sem o Jor), mostrava ter vocação para o sucesso. Em seis décadas, beijou o estrelato com “Mesmo Que Seja Eu”, “Gente Aberta”, “É Preciso Dar um Jeito, Meu Amigo”, “Pode Vir Quente Que Eu Estou Fervendo”, “Minha Fama de Mau”, “Mulher (Sexo Frágil) e “De Noite na Mesa”. Sem falar, todavia, em “Eu Sou Terrível” e “Detalhes”, clássicos na voz de Roberto Carlos.
Até quando emputeceu-se Erasmo criou música famosa. Mesmo bonitão, não conseguia ser aceito nas rodas da elite brasileira, especialmente a paulistana. Era bijucano, filho de mãe solteira e, ao contrário dos bem-nascidos, não exibia sobrenome. Aliás, exibia, e só um: Esteves. Ora, é preciso dar um jeito, meu amigo! Arregaçou as mangas e rascunhou sua revolta em versos famosos na voz de Gal Costa, em “Meu Nome é Gal”, gravada em 69.
Aos entorpecidos entrevistadores de “O Pasquim”, explicou que “meu nome é Gal” era, na verdade, um desabafo proletário contra a burguesia brasileira. “No Rio a menina pode morar em frente ao mar em Ipanema, milionárias, chega para uma amiga e diz: ‘sabe quem eu tô namorando? O Zeca do Leme’ E o Zeca é o maior pilantra, mas ela tá namorando ele, não quer nem saber, janta na casa dele, ele vai na casa dela”, afirmou à patota bêbada.
Em São Paulo, queixava-se o Tremendão, não era bem assim. “A menina chega para o cara e diz: ‘olha, estou namorando o João’. E a outra diz: ‘João de quê?’ É isso que eu sou contra. Em ‘Meu Nome é Gal’, eu e Roberto fizemos a música baseados nisso. O problema me aflige muito, mais do que a ele, porque estou cansado de namorar menina paulista, ligar a casa dela e não poder dizer que sou eu, porque se disser o pai dela mata ela e me mata.”
Gigante gentil, como o disco que fez e leva esse nome, envolveu-se em polêmicas. Talvez a mais preocupante delas tenha sido a de 15 de janeiro de 1967, ao reagir a provocações de um sujeito na plateia num show realizado no interior paulista. Para sair do espaço, contou com a ajuda da polícia e, na estrada, seu carro acabou por ser alvo de tiros.
Barra pesada
Ao DM, em dezembro de 2021, Erasmo contou que enfrentou uma barra pesada em matéria de saúde. “Me recuperei das sequelas da covid-19: respiração, equilíbrio, essas coisas. Tive que reaprender certas coisas. Fiz fisioterapia, fonoaudiologia, acupuntura. Recuperei graças aos fãs, família. Foi o que me ajudou, bicho”, recordou-se à época. Vinte anos antes, descobriu câncer na garganta. Curou-se, até que, num exame para investigar cálculo renal, tomou conhecimento de tumor no fígado. Recorrer à radiocirurgia, método não-invasivo.
Pioneiro, Erasmo Carlos foi o primeiro cara a usar chapéu de cowboy, como na foto de “Carlos, Erasmo…”, clicada pelo fotógrafo João Castrioto. E o primeiro a usar pulseira? Ele. “Eu gosto muito de ser pioneiro. Mas meu maior orgulho de todos é o rock em português, sabe, bicho”, disse, em depoimento para o documentário “Erasmo Carlos 80”. Morre Erasmo Carlos, se é que Erasmo Carlos – como Elvis Presley – morrerá um dia.