Maior representante da contracultura nas artes cênicas, o dramaturgo José Celso Martinez Corrêa politizou o teatro brasileiro com espetáculos que entraram para a história. Um deles, “O Rei da Vela” (1967), baseado em texto modernista escrito por Oswald de Andrade nos anos 1930, chegou a ser considerado impossível de ser montado. Era munido de verborragia libertária, espírito anárquico e estética antropofágica. Nada muito atrativo aos militares.
A cada cena, revelavam-se as características que tornaram Zé Celso grande expoente do tropicalismo no teatro. O primeiro ato, estruturado em torno das operações de agiotagem de Abelardo I, possui elementos da linguagem circense. Às voltas com sexo numa ilha localizada na baía de Guanabara, o segundo traz ao palco o teatro de revista. E o último, no qual o espectador regressava ao estágio inicial, havia um tipo de tratamento operístico.
Para o crítico Décio de Almeida Prado, na obra “O Teatro Brasileiro Moderno”, o artista subverteu o ufanismo praticado pelo Teatro de Arena naquele momento histórico numa celebração do “subdesenvolvimento material, mental e artístico”. “Como eu sigo Dionísio, eu acredito na potência do teatro, no poder transformador, no poder da presença diante da presença do poder”, divagou o dramaturgo, num bate-papo com o jornalista e crítico Nelson de Sá, que está disponível para o público no canal pelo Youtube do Itaú Cultural.
Nascido em 1937 na cidade de Araraquara, José Celso Martinez Corrêa abandonou a vida interiorana reacionária e se mudou, no ano de 1955, para a capital São Paulo. A mãe, descendente de espanhóis, tinha sangue quente. Mas o pai era dócil, gostava de livros e lhe apresentou o cinema, arte pela qual se apaixonou na infância. Se um futuro seguro passava pelo diploma universitário, lá foi Zé Celso: ingressou na Faculdade de Direito da USP, instalou-se no Largo São Francisco e passou a frequentar o Centro Acadêmico 11 de Agosto.
Nesta época, descobriu o existencialismo de Jean-Paul Sartre. E queria criar um movimento cultural no centro acadêmico, cujo nome seria “a Oficina”, como se fosse uma fábrica em que o novo homem iria construir sua essência. Bem sartreano. Irreverentes, criativos e transgressores, os primeiros textos do Grupo de Teatro Amador Oficina foram montados sob direção de Amir Haddad, dentre eles “Vento Forte para Papagaio Subir” (1958) e “A Incubadeira” (1959), ambos escritos por Zé Celso e carregados em aspectos autobiográficos.
Se por um lado, nos anos 60, o grupo se profissionalizou, com montagens realistas como “Todo Anjo é Terrível”, texto da dramaturga norte-americana Ketti Frings, baseado em romance autobiográfico do escritor Thomas Wolfe, foi com “Pequenos Burgueses” (1963), do russo Máximo Gorki, que passou a ser conhecido: escrita em 1901, a peça tecia uma contundente crítica às instituições do capitalismo. Zé Celso estabelecia paralelo entre a Rússia czarista (pré-revolucionária) e o Brasil cujo cidadão médio endossava golpe militar.
Até hoje, estudiosos das artes cênicas dizem que esse espetáculo é a melhor definição do que é ser stanislavskiano - ideias e elementos expressivos que auxiliam durante o processo de construção do personagem. Baseia-se na improvisação e, sobretudo, na espontaneidade. O eixo central é retirar, de uma vez por todas, resquícios de mimetismos e clichês. No ano seguinte, agora com o estado militar instaurado no Brasil, o diretor perseguiu temas de cunho políticos em “Andorra”, texto escrito por Max Frisch e montado em 1964.
Dramaturgo usou alegoria para criticar capitalismo
Após montar “O Rei da Vela”, levar a tropicália aos palcos e usar alegoria para criticar o capitalismo, Zé Celso testemunhou o terror ditatorial pós-AI-5. “Roda Viva”, escrita por Chico Buarque, foi a primeira experiência do dramaturgo paulista fora do Oficina. A trama se desenvolvia em torno de um ídolo da música popular manipulado pela imprensa e indústria fonográfica. Com isso, fertilizou-se o ambiente para a raiva e a provocação.
Numa das noites em que o espetáculo estava em cartaz, por exemplo, houve atentado à bomba no Rio - prenúncio do que fizera o CCC em São Paulo, no Teatro Ruth Escobar, quando mandou a atriz Marília Pêra e o ator Rodrigo Santiago, pelados, saírem às ruas. Zé Celso, então, se voltou a um teatro mais cerebral. E montou duas peças do dramaturgo alemão Bertolt Brecht: “Galileu, Galilei” e “Na Selva das Cidades”. As coisas mudam, no entanto, assim que o artista descobriu o grupo norte-americano The Living Theater.
Dessa vez para valer, o diretor brigava com as palavras, ao criar, em “Gracias, Señor” (1972), um espetáculo ritualístico. Tal transgressão foi demais para Renato Borghi, que debandou do Oficina, deixando Zé Celso abalado. Preso e torturado pela repressão, Zé exilou-se em Portugal e Moçambique. Retornou ao Brasil no final dos anos 70. Mesmo com perspectiva de abertura política, calou-se durante os anos 80, dedicando-se aos cursos de formação.
Na década de 90, adaptou texto de “As Criadas”, de Jean Genet. Conheceu seu parceiro de arte e vida: Marcelo Drummond, com quem se casou no mês passado. Nos anos 2000, demonstrou mais uma vez força criativa com a transposição para os palcos de “Os Sertões”, narrativa épica de Euclides da Cunha. Nesse período, vivia o auge de uma queda de braço com Silvio Santos. Zé Celso nunca poupou energia para defender o entorno do Oficina.
Em 2016, como parte das comemorações pelo centenário do movimento dadaísta, Zé Celso esteve em mesa-redonda no Centro Cultural da UFG (CCUFG). “Tive alegria de trazê-lo a Goiânia num evento que comemorou o centenário do dadaísmo. Também tive a honra de mediar o ‘debate’ entre ele e Bia Medeiros”, lembrou o jornalista Thiago Lemos, em postagem nas redes sociais acompanhada por fotos do dramaturgo.
“Gosto de lembrar da performance que ele fez no final do evento. Não fiquei prestando tanta atenção nela, que eu já conhecia, mas sim no público, que ficou atônito. Refleti muito sobre a caretice das pessoas que vão ao teatro aqui em Goiânia e o tanto que foi chocante pra elas virem uma simples cena que tinha uma nudez e uma sexualidade envolvidas”, recorda-se o diretor de arte Thiago Desolih, que marcou presença no evento Dada Spring.
Ator, diretor, dramaturgo, militante político e artístico, Zé Celso Martinez Corrêa morreu aos 86 anos em São Paulo, ontem, após ter mais da metade do corpo queimado num incêndio ocorrido na última terça-feira, 4, no seu apartamento. Ele vivia com o marido, o ator Marcelo Drummond, com quem se casou no mês passado - mas junto de quem dividia a vida há mais de 30 anos. Zé Celso é velado na sede do Teatro Oficina.