A cultura da periferia brasileira é rica e problemática. E com razão. Herdeira da escravidão, que dilacerou a trajetória de diversas famílias de brasileiros, a periferia abraçou desde cedo os escravos (e assim foi com a Baixada Fluminense) e depois com os libertados por um abolicionismo aviltante e irracional, tido mais como um "chega pra lá" nos negros do que como movimento planejado para construir uma sociedade igualitária.
A periferia, como se vê no dialeto do rap, é só problema. De algumas épocas para cá, também solução, a exemplo do que se falará neste texto.
Toda esta trajetória dos negros pode ser sentida (com emoção pelo olhar branco incomodado e com orgulho pelos 'pretos' rejeitados) no documentário "Racionais - das ruas de São Paulo pro mundo". Apesar de prolixo e repetitivo, o filme em cartaz no streaming é um passaporte para conhecermos um dos melhores grupos da música brasileira e ainda a ser descoberto internacionalmente como uma espécie rara da cultura urbana - no filme, compara-se muito Racionais MC com os antológicos Public Enemy, dos EUA, mas é sem modéstia que se diz: os brasileiros são ainda melhores. Afinal, o documentário traz verdades? Sim, deles. É uma opinião do grupo, sem buscar objetividade ou mesmo uma análise mais fria sobre o objeto. É preciso, logo, o fruidor observar a angulação orientada.
O doc traz os 'tics' da banda, nem sempre certos para outras leituras de mundo, como sua visão social, o uso excessivo de cigarros na tela, flerte com criminosos, ode ao consumo, por vezes um linguajar mais agressivo. Bate também na mesma tecla messiânica do grupo paulista que uniu Zona Norte e Sul nos anos 1980 e 1990 e tornou-se referência da música jovem brasileira. Até o meio do documentário, Mano Brown - ao falar dos Racionais - parece se referir aos "santos" da música e da luta contra o racismo. Do meio para o final, ele reconhece que muitos fizeram antes e outros fazem agora - e sem mídia, refletores, documentários ou terem frequentado o Capão Redondo.
Em ordem cronológica, a direção permeia o vídeo com o mais forte do grupo paulista: depoimentos e letras impactantes, que alçam Mano Brown ao seleto conjunto dos grandes letristas da música brasileira. Sim, ele está lá na sala com Chico Buarque, Alceu Valença, Caetano, Milton, Renato Russo, Paulo Coelho-Raul Seixas e Cazuza.
Apesar de centrado excessivamente nos personagens, o documentário registra a cena rapper em paralelo, lembrando por segundos de figuras determinantes como Thaíde e DJ Hum, que foram, ao lado de outros grupos, como Código 13, anos antes dos Racionais, os pioneiros de um movimento que planejou e executou a cultura de rua nacional. Thaíde merece um doc deste nível. Aliás, o mesmo para os Kães de Rua, grupo de rap de Goiânia que começou antes dos Racionais.
O melhor para se ver no streaming: o documentário é um depoimento extenso. Ice Blue, Edi Rock e KL Jay completam as falas de Brown e mostram que também são tão essenciais quanto o principal porta-voz. Isso não estava claro para um público mais distante.
É um vídeo profundo na reconstrução das sociabilidades que fizeram o Racionais ( a família, as amizades), nas tretas que rolaram ao longo de 34 anos de banda e na construção narrativa das letras. O grupo que deu voz ao "Diário de um Detento", "Vida Loka", "Jesus Chorou", enfim, tem lugar privilegiado na história da música brasileira.
Não sei se perceberam, mas todos grandes ali citados (Chico, Caetano, Renato Russo, etc) nasceram em lares estruturados ou ricos. Eles jamais contaram as histórias da periferia. Também pudera: não estavam lá, de fato. Já os Racionais chegaram para dizer quem são numa "Sampa" sem Rita Lee e Avenida São João: "Hei, São Paulo, terra de arranha-céu/ A garoa rasga a carne, é a Torre de Babel/ Família brasileira, dois contra o mundo/ Mãe solteira de um promissor vagabundo/ Luz, câmera e ação, gravando a cena vai/ Um bastardo, mais um filho pardo sem pai/ Hei, senhor de engenho, eu sei bem quem você é/Sozinho cê num guenta, sozinho cê num entra a pé".