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Novas palavras, novos tempos: como os dicionários acompanham a transformação da linguagem

A riqueza dos dicionários históricos e sua contribuição cultural

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O surgimento dos dicionários remonta à Antiguidade, com registros que indicam seus primeiros formatos já no século I. Os gregos foram os responsáveis pela criação dos primeiros léxicos estruturados, reunindo informações sobre palavras e seus significados. Entretanto, há evidências de versões ainda mais antigas desse tipo de obra, como as tábuas de argila sumérias, que continham registros em escrita cuneiforme na antiga Mesopotâmia.

Foi somente após a invenção da imprensa por Johannes Gutenberg, no século XV, que os dicionários passaram a se difundir de forma mais ampla. Esse avanço está diretamente relacionado com a história social do conhecimento e às transformações nos hábitos de leitura. Conforme destacou o historiador britânico Peter Burke, em artigo publicado na Folha de S.Paulo, "a demanda por dicionários esteve ligada ao surgimento de práticas culturais que incentivavam seu uso regular, incluindo hábitos de leitura, como o costume de consultar livros em busca de itens específicos de informação, em vez de lê-los do começo ao fim".

Desde então, a lexicografia — ciência que estuda e elabora dicionários — tem evoluído significativamente. Inicialmente abrangentes e generalistas, essas obras foram gradativamente se especializando. A professora Ieda Maria Alves, especialista em lexicografia da Universidade de São Paulo, destaca um marco importante na língua portuguesa. "O nosso Aurélio é considerado o primeiro grande dicionário de referência da língua portuguesa, até por portugueses", afirma.

O trabalho dos lexicógrafos e os desafios da definição de palavras

Elaborar um dicionário exige precisão e rigor técnico. Segundo Alves, um dos maiores desafios do trabalho lexicográfico é definir cada termo de maneira objetiva e uniforme, respeitando as classes gramaticais e os diferentes contextos de uso.

Outro aspecto crucial da atividade envolve a abordagem de termos considerados controversos ou potencialmente ofensivos. Palavras relacionadas com etnias, grupos religiosos, identidade e comportamento exigem atenção especial, a fim de evitar reforço de preconceitos ou interpretações discriminatórias. Um exemplo ocorreu com o verbete “cigano” no dicionário Houaiss, cuja definição, ainda que sinalizada como pejorativa, gerou polêmica e levou o Ministério Público Federal a solicitar a remoção de referências preconceituosas.

Além da precisão na definição, os dicionários refletem a constante transformação das línguas. A inclusão de novas palavras segue critérios rigorosos, como a estabilidade de uso e a relevância para a comunicação cotidiana. Para o presidente da Fundação Biblioteca Nacional e membro da Academia Brasileira de Letras, Marco Lucchesi, a lexicografia tem um caráter retrospectivo. "Os dicionaristas chegam tarde, o que lhes dá certa vantagem, uma vez que entendem quais palavras tendem a permanecer e quais são voláteis, mas ainda assim essenciais para compreender aquela quadra histórica", analisa. "Quem legisla isso é a língua viva."

Novas palavras e a expansão do léxico

Para acompanhar as transformações linguísticas, a Academia Brasileira de Letras criou a seção Novas Palavras durante a presidência de Lucchesi. Essa iniciativa registra e destaca termos emergentes, refletindo mudanças socioculturais e tecnológicas. Entre os verbetes recentes estão "aporofobia", que designa a aversão a pessoas em situação de pobreza, e "dorama", termo usado para produções audiovisuais seriadas do Leste e Sudeste Asiático.

A valorização do acervo lexicográfico também se manifesta no apreço de estudiosos e escritores pelos dicionários históricos. Lucchesi menciona sua admiração pelo Vocabulário Português e Latino de Raphael Bluteau, publicado no século XVIII, obra que utilizou como referência na tradução de livros de Umberto Eco, como A Ilha do Dia Anterior e Baudolino.

Dicionários além da linguagem: práticos e lúdicos

Além dos dicionários tradicionais, existem obras voltadas para finalidades específicas. Alguns oferecem suporte à leitura de grandes romances, como o Dicionário de Nomes e Lugares de Em Busca do Tempo Perdido, de Michel Erman, que auxilia a compreensão da complexa narrativa de Marcel Proust.

Outros têm caráter lúdico e imaginativo, como o Dicionário de Lugares Imaginários, de Alberto Manguel e Gianni Guadalupi. Esse livro apresenta descrições detalhadas de locais fictícios, tratados como se fossem reais. Entre os exemplos, figuram a abadia de O Nome da Rosa, de Umberto Eco; o Sítio do Picapau Amarelo, da obra de Monteiro Lobato; e Pasárgada, imortalizada pelo poeta Manuel Bandeira.

A paixão pelos dicionários também motivou o jornalista e escritor Humberto Werneck a criar O Pai dos Burros, lançado em 2009. Diferente dos dicionários convencionais, essa obra organiza e analisa expressões clichês do cotidiano, como "ascensão meteórica", "dispensar apresentação" e "anos de chumbo". Werneck enfatiza que a intenção não é proibir seu uso, mas estimular um olhar crítico sobre automatismos da linguagem. "Sempre achei que era preciso seduzir o leitor para ser lido", afirma. "Minha santa padroeira é a Sherazade, de As Mil e Uma Noites, aquela que salvou o pescoço graças à maneira como contava suas histórias. Não há contradição maior do que dar uma notícia nova com linguagem velha."

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