Hoje é o aniversário de Consuelo Nasser. Se estivesse viva, ela completaria 80 anos. Descrever a trajetória da fundadora do Centro de Valorização da Mulher (Cevam) e dirigente do mais emblemático semanário goiano da contemporaneidade, o Cinco de Março (1959-1979), durante a ditadura militar e civil, é o mesmo que mergulhar em uma vida repleta de adversidades, enfrentamentos e rupturas, tanto em sua atuação política e social quanto em sua intimidade.
Mulher dotada de uma personalidade forte, com liderança exposta, Consuelo permeou, até o final da sua vida, em 20 de agosto de 2002, dois mundos: a da aprisionada ao papel de mãe e esposa e a da libertária forjada pela educação, carreira e lutas coletivas. Nunca aceitou o papel de coadjuvante. Considerava a rotina diária da vida um fértil campo para se libertar das influências atávicas das Ordenações Filipinas (mulher para servir e homem para ser o senhor todo poderoso) e, assim, se reinventar como mulher.
E como norte seguia uma das principais frases do movimento feminista entre os anos de 1960 e 1980, criado pela autora de Memórias de uma moça bem comportada (1939) e Segundo sexo (1949), Simone de Beauvoir: “Não se nasce mulher, torna-se mulher.” Para Consuelo, a mulher, assim como o homem, nunca tiveram um destino biológico. Os seus papéis sempre são formados dentro de uma cultura que define qual o papel que cada um terá no seio da sociedade.
É nessa ótica que Consuelo Nasser comandou financeiramente os jornais Diário da Manhã (1982-1984) e Folha de Goyaz (1984), além de fundar e comandar, editorial e administrativamente, o jornal Edição Extra (1984-1985), e a Revista Presença (1986-1991). Antes, porém, de vivenciar por nove anos essa jornada empresarial e jornalística, ela esteve afastada desse universo.
Casada com o jornalista Batista Custódio, que conhecera em uma das reuniões políticas na casa do seu tio Alfredo Nasser, Consuelo Nasser foi mãe de nove filhos (Júlio Nasser – atual presidente do Diário da Manhã, Fábio Nasser, Tanila Romana, Luciana, Mônica, Jorge, Sérgio, Camila e Vanessa). Tanila morreu aos dois meses de vida (1968) e Fábio aos 32 anos (1999).
Depois de 23 anos de vida comum, Consuelo Nasser e Batista Custódio se separam, em 1985. Sempre movida pela paixão, ela amava e odiava apaixonadamente. Na realidade, Consuelo Nasser sempre se considerou uma inconformada, uma pessoa que não perdia a indignação juvenil com relação à miséria e à violência.
Os três últimos anos de vida de Consuelo Nasser foram marcados por profunda dor, em decorrência do suicídio do filho Fábio Nasser, em 17 de janeiro de 1999. A dor foi tão opressora que ela própria buscou a morte, ingerindo a todos os barbitúricos existentes em sua casa e perdendo o sepultamento do filho. No dia 20 de agosto de 2002, ela tomou todos os cuidados para que a situação não fosse revertida. Com um tiro, ela colocou fim a sua vida. Consuelo Nasser estava com 63 anos de idade.
CEVAM NASCE NO EXÍLIO
Afastada do universo jornalístico e empresarial, no início dos anos 1980, Consuelo Nasser sentia o peso da cultura agrária diluída na sociedade goiana. Amiga de Linda Monteiro, Mari Baiochi, Marília Vecci, Amália Hermano, Belkiss Spenciere, Gloria Drummond, Maria Cabral, Ivone Silva, Gracie Climaco e outras, Consuelo Nasser insuflou a todas pela criação de um entidade que questionasse publicamente a violência contra a mulher. Todas concordavam, mas não tinham muito bem definida a estrutura.
Com a morte da cantora Eliane de Grammont, em março de 1981, assassinada por seu ex-marido, o goiano Lindomar Castilho, Consuelo Nasser considerou encerrado o período em que matar mulher era socialmente aceitável. Entre uma e outra reunião na casa da amiga Linda Monteiro, o grupo fundou o Centro de Valorização da Mulher (Cevam). O propósito da entidade era mobilizar as mulheres numa frente ampla contra a violência, discriminação, atraso sociocultural e combate aos preconceitos.
Para tanto, desenvolvia campanhas permanentes de esclarecimento, visando a mudança da mentalidade tradicional, que se contrapunha à evolução da mulher como ser humano, além de, permanentemente, realizar passeatas exigindo a supressão das leis que humilhavam e inferiorizavam a mulher. Para época, as campanhas feministas do Cevam eram avançadas e de grande impacto.
Quase quatro anos após ter sido criado, o Cevam conseguiu, em 1985, que o prefeito Nion Albernaz (1983-1985) sancionasse uma propositura da vereadora Conceição Gayer, criando o Conselho Municipal da Condição Feminina. O espaço seria fechado, no ano seguinte, pelo prefeito Daniel Antônio 1986-1988. Cinco meses depois, em setembro de 1985, o governador Iris Rezende (1983-1986) instalaria a primeira Delegacia Especial de Polícia de Defesa da Mulher, em solo goiano e a segunda do Brasil. A pioneira no cargo foi a delegada Nadir Batista Cordeiro.
A próxima conquista capitaneada pelo Cevam seria a criação e instalação da Secretaria Estadual da Condição Feminina. Era um espaço genuíno e o primeiro da América Latina. As negociações para a efetivação do sonho haviam sido feitas com o recém-empossado governador Henrique Santillo. Comando da secretaria foi entregue a Maria Célia Vaz, ungida pelo movimento feminino. Dois anos depois, ela foi substituída por Marilene Viggiano, que dirigia o Cepaigo.
Entre a criação e extinção da secretaria, em 1991, pelo novamente governador Iris Rezende (1991-1995), todos os documentos, entre pesquisas, projetos e atas, foram transferidos do Cevam para a secretaria. Parte do material retornou para as mãos de Consuelo Nasser, quando ela já estava morando à Avenida 86, no Setor Sul, em Goiânia, e transformou a sua residência em sede do Cevam. Aliás, os últimos 11 anos de vida, Consuelo Nasser se dedicou, exclusivamente, à luta pela entidade, agregando a ela os serviços de abrigamento tanto de mulheres vitimadas pela violência doméstica e sexual (Projeto Nove Luas) quanto adolescentes (Projeto Castelo dos Sonhos).
JORNALISMO, COMO SEARA DA INDEPENDÊNCIA
No início de 1959, restando-lhe um ano para se formar, Consuelo Nasser voltaria para Goiânia, acompanhando o tio Alfredo Nasser, que acabara de tomar posse como deputado federal (1959-1963). O ambiente político na capital era, extremamente, convulsionado, com os estudantes secundaristas protestando contra o aumento das passagens no transporte coletivo e das mensalidades escolares.
O governador José Feliciano (1959-1961), do PSD, havia determinado violenta repressão contra as manifestações que resultou, no dia 5 de março de 1959, na morte de um estudante secundarista, durante uma passeata pacífica em frente ao Mercado Central de Goiânia. Faziam parte do movimento Consuelo Nasser, Batista Custódio, Telmo Faria, Javier Godinho, Valterli Guedes e Zoroastro Artiaga.
Depois de inúmeras reuniões na casa de Alfredo Nasser, o grupo decidira criar o jornal, com a data do massacre. Consuelo Nasser convenceu o tio Alfredo Nasser a lhe doar as oficinas do Jornal de Notícias, fundado em 1952, e que dera grande visibilidade ao político. As máquinas da gráfica, que haviam sido financiadas com recursos enviados pelo líder do PSP paulistano Adhemar de Barros, imprimiam em duas cores e duas páginas ao mesmo tempo. Era um avanço tecnológico para a época.
A outra parcela do maquinário foi doada por Randal do Espírito Santo Ferreira. Consuelo Nasser, depois de ajudar na viabilização do recém-criado jornal Cinco de Março (ele circularia pelos próximos 20 anos), cujo comando da redação ficou a cargo de Batista e Telmo, retornou ao Rio de Janeiro, para terminar os estudos. Ao regressar no final de 1962 para Goiânia, começou a trabalhar meio expediente na Assembleia Legislativa de Goiás e assumiu o cargo de redatora-chefe do Cinco de Março, a convite de Batista Custódio, então editor-geral do semanário.
Nos oito anos seguintes, o semanário fez fortes ataques aos governos federal, estadual e municipal. As matérias eram extremamente opinativas e sustentadas em bordões e figuras de linguagem comum. Com o Golpe civil e militar de 1964, Batista Custódio e o seu sócio Telmo de Faria foram presos. Consuelo Nasser se asila em Caiapônia, depois de ser avisada por seu tio que o governador Mauro Borges (1961-1964) determinara a sua prisão.
Libertado, Batista seguiu ao encontro da esposa. Por cinco meses o Cinco de Março não circulou. Ao retornar, o semanário foi invadido por policiais e teve seu maquinário e documentos destruídos, no dia 10 de agosto, depois de publicar uma notícia denunciando o rombo de cinco milhões de cruzeiros dos cofres da Polícia Militar de Goiás. De acordo com a denúncia, feita por um oficial da PM, os militares teriam rifado armas e munição para cobrir o rombo antes que fosse descoberto por algum superior.
Os prejuízos causados pelos ataques determinados pelo Palácio das Esmeraldas jamais foram restituídos. Levou-se três meses consertando a quebradeira. Apesar da censura, do empastelamento e das transformações que o enfraquecimento da vida democrática do Brasil, o Cinco de Março continuou mantendo a sua linha editorial voltada para as denúncias de corrupção, má prestação de serviços e descuido com o caráter público inerente ao Executivo e ao Legislativo.
Em 1965, o semanário chegou a vender 60 mil exemplares, por edição. A partir de 1970, com a ascensão do general Emílio Garrastazu Médici (1905-1985) ao Palácio do Planalto e o recrudescimento do Regime Militar, com torturas, sequestros e desaparecimentos, a linha editorial do Cinco de Março foi amenizada, acolhendo um jornalismo noticioso e mais cauteloso.
Apesar da precaução, Batista Custódio foi preso, por crime de opinião, em 1970. Coube, então, a Consuelo Nasser o controle editorial e administrativo do Cinco de Março e o comando de uma cruzada para a libertação do marido, cujo encarceramento durou oito meses. Em ambas as empreitadas sagrou-se vitoriosa. Julgava ser uma herança dos seus ancestrais fenícios. Conseguiu amealhar uma considerável poupança, a qual, aliás, foi utilizada para estruturar o jornal Diário da Manhã, criado em 1980.
O esforço supremo lhe causou um profundo esgotamento, que a obrigou a se afastar do trabalho até 1982. O retorno à redação se deu em outubro de 1984, quando o Diário da Manhã foi fechado. Era um momento de resistência ao poderio político e econômico capitaneado pelo Palácio das Esmeraldas. Consuelo Nasser fundou o jornal Edição Extra, que teve a sua circulação interrompida em 5 de fevereiro de 1985, quando o Poder Judiciário interditou a Unigraf.
Consuelo Nasser estava decidida a retornar ao jornalismo. Com algumas economias da amiga Rosângela Mota (dois mil dólares, que foram comprados pela amiga Stella Berocan, a valores superiores ao do câmbio oficial, apenas para ajudar Consuelo Nasser), ela e o filho Júlio Nasser conseguiram criar a Revista Presença, que começou a circular em dezembro de 1985, pouco antes dela completar 47 anos de idade.
Uma mídia editada e dirigida exclusivamente por mulheres. A capa e as páginas coloridas eram rodadas em São Paulo, onde havia se lançado uma nova tecnologia: a digitalização. O último número da revista circulou em abril de 1991 e Consuelo Nasser decidiu não mais lutar contra o poderio governamental.