Madrugada do dia 31 agosto de 2014. A cidade de Corumbá está em festa, por motivo das cavalhadas. Nas estradas a festa da reforma agrária estava partindo de muitos pontos do estado de Goiás. O Movimento Sem Terra se preparava para uma ação que há muitos anos o movimento não executava.
O objetivo do ato, ocupar a fazenda Santa Mônica, de posse do senador Eunício Oliveira. Terra que se estende por mais de 20 mil hectares. Muita terra improdutiva em um ponto estratégico de Goiás, perto de grandes cidades do estado como Goiânia e Anápolis. Próxima também do Distrito Federal, pouco mais de 100 quilômetros de distância. Para realizar essa ação foram mobilizadas cerca de 3 mil famílias.
Primeira parada, cidade de Anápolis. Um casal cedeu sua casa, no Daia, Distrito Agroindustrial de Anápolis, como um dos pontos de encontro e preparação pro ato. A todo momento pessoas chegavam ao local, para acertar os últimos detalhes da ação, descansar um pouco e fazer uma refeição. “Comi feito um sem terra”, falou em tom de brincadeira um dos militantes.
O fluxo de pessoas e veículos na casa causou inquietação nas redondezas. A polícia começou a rondar a residência. Para evitar que o ato fosse implodido a orientação era assumir uma postura mais cautelosa e silenciosa. a repressão policial antes mesmo da ação poderia ter arriscado tudo.
O clima era de ansiedade, principalmente pra quem passou seus últimos meses se dedicando ao planejamento do ato. Celulares tocando todo o tempo, as pessoas pedindo e passando orientações umas a outras. Gente de todos os acampamentos e assentamentos do estado de Goiás fortaleceram a luta.
Segunda parada, uma longa espera na cidade de Corumbá. Devido a festa na cidade, um contingente considerável de policiais militares cumpriam sua ronda. O que não era comum à festa era a presença de viaturas da Polícia Rodoviária Federal (PRF), que estavam no local por estar previamente informada sobre a possibilidade do ato. Mesmo com o máximo de cautela é complicado manter esse tipo de ação em absoluto sigilo.
As Cavalhadas já ocorriam há horas nas ruas da cidade, mas a “festa da reforma agrária”, como disse um dos militantes, começou já na alta madrugada. No carro que tomou a frente do primeiro comboio, e no qual eu e a intercambista da UFG Berta Camprubí estávamos, tocou o telefone. O motorista do veículo atendeu e disse com animação “Começou”.
Na saída da cidade começou uma aglomeração de veículos, seguindo um atrás do outro. Eram muitos carros, de forma que não dava pra ter uma ideia da quantidade, a vista já não podia alcançar e muitos ainda estavam em ruas paralelas, ou nem mesmo tinham conseguido entrar na cidade. À medida que o comboio foi deixando Corumbá dava pra ver uma fila de carros e ônibus inacreditável, quilométrica.
A polícia militar tentou barrar com suas poucas viaturas a progressão da carreata rumo à fazenda. Mas eles perceberam que era inútil, pois o contingente policial se mostrava muito pequeno perto da quantidade de famílias que se aglomeravam na estrada.
Durante o caminho que leva a fazenda, mais uma interceptação da polícia, acompanhados pelos empregados da fazenda Santa Mônica. A polícia ordena a interrupção da caminhada, barrando a estrada. Os militantes começam a descer do veículo para conversar sobre o embargo. Descem com barulho e palavras de ordem.
A PRF exigiu falar com um representante. Alinhados começaram a falar que não havia representantes, que eles se aproximassem e falassem com todos. Os empregados, protegidos por policiais e coletes a prova de bala, apresentaram um documento. Tratava-se de um interdito proibitório expedido pelo juiz Levine Artiaga. O empregado começou a discursar, dizendo que o movimento estava mal informado e que a fazenda era produtiva e portanto não havia motivo para a ocupação.
Em resposta os integrantes do movimento apenas disseram: “Peraí, que invasão?” Então eles informaram que apenas estavam seguindo aquela estrada para desenvolver uma atividade do movimento em uma cidade próxima, Alexânia.
E a pergunta do movimento ao grupo que o interceptou era: “Por que esses civis têm o direito de exigir a interdição de uma rodovia?” Diante esta colocação eles não podiam fazer muita coisa. A polícia respondeu que não era nada disso. “Então podemos seguir nosso caminho?” Silêncio. “Então vamos embora”.
Prosseguiu então o comboio, até o colchete mais próximo à área designada ao acampamento. “Cadê as ferramentas?” A entrada trancada por um cadeado foi arrebentada com um alicate. Os incontáveis carros entraram na fazenda. Eu e Berta pedimos para descer do carro, pra fazer umas fotos. Descemos. Passado parte do comboio um senhor para o carro e fala “Entra no carro, é perigoso ficar aí”.
Entramos no veículo e o senhor diz: “Nossa, vocês não podem ficar ali dando bobeira, vai que vocês são presas e a gente precisa negociar”. Ele continua: “Sabe o que a gente vai fazer agora?” Respondemos que não. “Vamos fazer pão de queijo. Sabem o que é isso?” Respondo que já comi pão de queijo mas não sei bem do que ele está falando. Ele deu uma risada e falou “Matar um boi, pra alimentar o povo. Olha o tanto de gente.”
O trabalho continuou intenso no fim da madrugada pra descarregar carros e caminhões que traziam comida e objetos para a permanência no acampamento. Em pouco tempo, antes do fim da manhã, toda a paisagem já havia sido modificada, o descampado tomado por veículos e barracas.
O ato de ocupar foi só a primeira parte da luta. As três mil famílias já estavam dentro da propriedade, mas a permanência é difícil e necessita de coletividade e trabalho. No fim da tarde a primeira reunião. Orientações sobre as necessidades do acampamento, sobre o trabalho diário para que tudo funcionasse, palavras de incentivo à luta.
Na entrada onde antes tinha um cadeado foi instalada uma faixa “Malditas sejam todas as cercas”. Bandeiras do movimento marcavam que naquele momento a fazenda era um espaço onde se exigia a reforma agrária. Estava então instalado no meio daquele latifúndio de proporções absurdas o acampamento Dom Tomás Balduíno.
A constituição brasileira define que a propriedade deve possuir uma função social. Isso significa que terra onde não se cultiva deve haver reforma agrária. Não pode ser apenas uma escritura na mão de alguém. Mas o que é justo quase nunca vem fácil, necessita de luta.
Próximo a cidade de Corumbá existe aquela terra que não cumpre o seu papel, de ser espaço pra plantar, para alimentar a população. Vinte mil hectares à disposição do então senador Eunício de Oliveira. Esse tal Eunício, pessoalmente, nunca plantou naquele pedaço de chão sequer um pé de jabuticaba. Centenas de família, fizeram dali sua luta e moradia por um período. Ali plantaram hortaliças e esperança.
Não citei nomes por questões óbvias de não comprometer o movimento. Mas digo um nome, mesmo que vago, João, melhor dizendo, um João, pra ficar mais incógnito. Foi o cara que me arranjou um copo de café no primeiro dia. Durante todas as vezes que eu estava no acampamento ele me ensinava sobre autores e canções do movimento, inclusive essa do epígrafe. Me deu um pacote de cigarros de filtro vermelho e falou “Fumo esse trem não. Gosto de fumo de enrolar.” As vezes que voltei lá levei fumo pra ele.
Tenho muitas críticas à cúpula do MST e sua ligação partidária tão enraizada, que acaba usando a força da luta pela terra para servir interesses muito alheios a isso. Mas pude observar, no meu contato com o movimento, uma sólida estrutura de organização e congregação de pessoas. Apesar de toda minha ressalva com a cúpula, a base muito me agrada. Muito difícil movimentos sociais tão complexos e com tanto poder de adesão popular.
Em 10 de novembro, o acampamento já resistia há 70 dias. Nessa data os militantes levaram para Corumbá produtos que plantaram na ocupação. Alface e tempero distribuídos gratuitamente durante uma extensa caminhada pelas ruas da cidade. Fiz várias visitas ao Dom Tomás, posteriores a ocupação, durante os sete meses de resistência, inclusive participei de uma longa jornada que ia do acampamento até a luxuosa sede da fazenda.
Na manhã de 4 de março de 2015 foi deflagrada a desocupação da fazenda Santa Mônica. A terra, legalmente do senador Eunício Oliveira do PMDB do Ceará, voltou ao estado simplório de propriedade. Nem tudo que é legal é moral. O Tribunal de Justiça do Estado de Goiás havia determinado a desocupação. De acordo com a Polícia Militar goiana tudo ocorreu de forma pacífica. A “paz” às vezes é imoral também.