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ENTRETENIMENTO

Despertador

Os ventos de maio sempre esfriam o clima do cerra­do. Talvez seja uma res­posta universal para tentar esfriar as chamas de outras épocas, as cha­mas que sempre esperamos que cheguem junto com esse mês icôni­co, com histórias de luta, repressão e resistência. Em 1968, em 2013, em 2014 e agora em 2018. Foi em um dia como esse, frio, porém cheio de sonhos e esperanças, que esse jornalista que vos escreve pode pre­senciar a face mais draconiana do estado brasileiro e seus tentáculos nefastos de repressão.

Eu, que outrora, em meados de 2014, estive com o rosto estampa­do e publicado como criminoso, terrorista e um perigoso vândalo, nas capas desse jornal, agora como jornalista e editor do mesmo, posso mais uma vez responder à matéria do jornalista Hélmiton Prateado, que de forma distorcida deu uma versão irreal dessa mesma história. Republico essa crônica para que não se torne banal, apesar da repe­tição, que não esquecemos e nem perdoamos o coturno e o cacetete que bate forte em nossos braços e punhos, para que não mais os le­vantemos.

Segue a crônica que escrevi, ainda naquela época, sobre um dia frio, esquisito e que começou bem cedo, antes mesmo de ou­vir meu despertador.

São 5:54 da manhã. Meu pai abre a porta do meu quarto gritan­do muito nervoso, de susto mesmo: – “Rápido! Acorda! É a polícia que está ali embaixo!”

Vi nos olhos do Meu Velho, sem os seus usuais óculos e apenas de cuecas, o terror da situação. Era sex­ta-feira, 23 de maio de 2014. Meu aniversário de duas décadas, mas não havia muito o que comemorar.

Eu e minha linda companhei­ra, na época, Giovanna, estávamos quentinhos e pelados na cama. Mal deu tempo de vestir às pressas uma calça e vi adentrar, com brutalidade, na sala daquele apartamento, quatro oficiais, fardados de preto, apontan­do metralhadoras, pistolas automá­ticas e até uma espingarda calibre 12, a famigerada “punheteira”.

Três homens e uma mulher, usando capuzes também pretos co­brindo o rosto, vasculharam o pe­queno apartamento antes de dizer alguma coisa. Meu pai, com sobrie­dade e um pouco de medo, pergun­ta: “Quem são vocês?! Têm algum mandado?! Sobre o que se trata tudo isso?!”

Um deles tirou o capuz do ros­to (pensei comigo em como era irônico a polícia estar ali na minha sala travestida de Black Block) e se apresentou como o delegado. Apresentou um papel com o man­dado de prisão preventiva e de bus­ca e apreensão de uma pasta de nome: OPERAÇÃO 2,80. Pergun­tou se eu que era o Heitor, com a confirmação positiva e seca – “sou eu”, me entregou o documento.

Enquanto examinava o docu­mento, tal delegado, de nome Ale­xandre, com tom agressivo e ten­tando desnecessariamente impor respeito e superioridade pela voz (desnecessariamente, pois o mesmo junto com sua tropa estava armado até os dentes de uma forma que só tinha visto em filmes) – “Heitor Vile­la é acusado de ser o líder de quebra­deiras e vandalismo por toda a cida­de! Formação de quadrilha e de ter destruído mais de 100 ônibus nos úl­timos dias, fora ter incendiado o veí­culo da ‘Metrobus’, dando um prejuí­zo de mais de dois milhões de reais”.

Poxa vida, eu sou foda mesmo! Mais de 100 ônibus?! Nem Nero conseguiria tremenda proeza, devo ser o deus pagão do fogo. Minha mãe, de camisola ao can­to, chorando, falou: “Não foi meu filho quem fez isso não”. Foi inter­rompida com o “é melhor a senho­ra calar a boca”, gritado às seis da manhã, na garganta da excelen­tíssima autoridade ali presente.

Dois policiais, juntamente com o porteiro do prédio, que fora levado para a deflagração da gloriosa ope­ração como testemunha, adentra­ram o meu quarto. Agora consegui ler o distintivo no braço de um des­ses oficiais, D.R.A.C.O. (Delegacia de Repressão a Crimes Organiza­dos) começaram a revistar o quarto, gavetas, caixas, arquivos, folhas, pa­péis, tudo jogado sobre a cama com uma cavalar e mais uma vez desne­cessária força. Tudo bem, quietinho, sem movimentos bruscos e colabo­rando com a investigação.

Caixas de presentes e sapatos abertas, um baú de madeira com as cartinhas de minhas namoradinhas de adolescência revirado e lido pelo agente – “analisando para ver se con­figura prova...” disse com um sorriso lerdo no canto da boca. Panfletos, cartazes, textos de material para es­tudo da faculdade, jornais dos anos 80 e flyers de festas punks, manifes­tações e rocks antigos que guardava como registro histórico, material in­formativo do MPL (Movimento Pas­se Livre), jornais Avante da RECC (Rede Estudantil Classista Comba­tiva), exemplares da Nova Demo­cracia e até mesmo jornaizinhos do PSTU, todos atirados naquelas bol­sas pretas da delegacia com um in­defectível “confidencial” estampado.

Uma gaveta que tinha alguns piões de madeira, carrinhos em mi­niatura, bonecos dos Beatles, bro­ches de bandas psicodélicas dos anos 60, um nariz de palhaço, entre ou­tros brinquedos da minha infância, foi encontrada uma perigosa arma: um estilingue de plástico pequeno, daqueles que se compra em qual­quer loja de produtos a R$ 1,99 (com a borracha arrebentada, inclusive), e que também foi levado como prova.

Rabiscos, rascunhos e escarros, meus primeiros textos da faculda­de de jornalismo, computador (que uso para trabalho), celular, CD’s de música, filmes, cartões de memória e pen drives com fotos de família. Meus desenhos e primeiras char­ges feitas para o Jornal Samambaia da UFG, junto tudo que tinha guar­dado para o meu TCC. Além de ma­terial para primeiros socorros (fai­xa, esparadrapo, luvas de plástico e soro fisiológico), tudo atirado com grotesca força dentro da bolsa pre­ta que foi lacrada.

Após a coleta nada seletiva e papéis assinados, era a hora de ir para a delegacia. Peguei os cigar­ros e o isqueiro. Antes de sair, um dos oficiais que anotava meus da­dos com a identidade na mão, iro­nizou: “Hoje é seu aniversário, né? Parabéns!” Como não sabia no que tinha por vir, perguntei:“Com licen­ça, antes de ir poderia comer um pe­daço do bolo?”

Um bolo “prestígio” feito pela mi­nha mãe, uma delícia. Comi algu­mas garfadas com o meu amor, que estava bastante angustiada ao meu lado, apertando firme minha mão que, num sussurro, disse-me: “Vai ficar tudo bem, meu amor”. Me acal­mei um pouco. Mesmo sendo des­tratada com o ar escroto que qual­quer homem portando uma arma tem, minha mãe não podia deixar de oferecer um café aos homens da lei, como manda o costume do interior.

Mãos para trás, arma apontada para as costas, saio de cabeça levan­tada, é claro, cumprimento os vizi­nhos que, curiosos com o barulho, observavam a movimentação. Fui colocado no banco de trás de um carro a paisana, sentado em cima das mãos – “não tente nenhuma gracinha”. Os agentes da D.R.A.C.O. comentaram que outros dois alvos haviam sido capturados com suces­so, outro não fora encontrado. Poxa vida, os camaradas caíram também.

Chegamos à delegacia, que fica­va na velha Campinas, na Rua Ho­nestino Guimarães. Não fosse su­ficiente a ironia de ter sido preso no dia do meu aniversário, os po­liciais obstinados da Operação 2,80 (que contou com mais de 25 poli­ciais), levaram-me para uma dele­gacia que ficava numa rua que ti­nha um nome em homenagem a um dos estudantes que foram pre­sos, torturados e mortos nos “anos de chumbo” da ditadura militar no Brasil. Senti-me aliviado em pensar que agora estávamos em um esta­do democrático de direito e que aqueles malditos anos da ditadu­ra já não existiam mais.

Na porta do prédio da D.R.A.C.O., alto e grande, paredes largas e gra­des cinzas nas janelas. A imprensa carniceira, que havia sido informa­da previamente da gloriosa opera­ção da Polícia Civil para prender os perigosos vândalos urbanos, já lota­vam a entrada. Não eram nem sete da manhã e já havia sido acordado, humilhado, revistado, preso e foto­grafado para completar minha sen­tença com chave de ouro.

Era mais um dia comum, com a esquerda no poder, no país da copa. Parece o início de um discurso cli­chê, infelizmente é um espetácu­lo mais comum do que aparenta ser. No aniversário dos 50 anos do famigerado golpe militar de 1964, estava ali, preso, vivenciando uma nova caça às bruxas, o AI-5 goiano. E tudo “para manter a ordem públi­ca e a segurança nacional.”

Rabisco desde criancinha. Cari­catura do professor de matemática, desenhos para o Dia das Mães, Dia dos Pais, cartões de Natal e aniver­sário, cartinhas ilustradas para as primeiras paixões do ensino fun­damental (algumas até gostavam, outras riram um pouco). Esboços de pessoas e seus rostos. Logo de­pois comecei a fazer caricaturas nos parques e bosques da cidade, cobrava 10 reais e não demorava nem 10 minutos. Tirava o dinheiro para o cigarro e a cerveja do fim de semana, ainda dava para comprar mais canetas, papéis e cadernos e continuar sempre rabiscando.

Nunca pensei que pela caneta nanquim, ponta 0.3 e meu raso, po­rém ácido, conceito crítico em cima de uma determinada forma de per­ceber o mundo e a realidade, esta­ria preso, encarcerado na temida CPP goiana. Charges e quadrinhos como chave de cadeia. Passados 50 anos depois do terrível golpe mili­tar fui preso na calada da madru­gada por homens fardados e en­capuzados, segurando suas armas ostensivas, pelo perigoso porte de “material subversivo”. A caça às bru­xas rolando solta. Só faltou falarem “maldito comunista”! (logo eu que mal li o manifesto).

Minha expressão, minha arte. Desenhos perigosos, proibidos, apreendidos, julgados e conde­nados. Parabéns à D.R.A.C.O. (Delegacia de Repressão à Arte Criativa e Original).

PS.: O dito processo kafkiano operado pela Draco ficou engave­tado no Ministério Público e ape­nas três anos mais tarde, em 2017 (também no mês de maio), um juiz deu o parecer recusando to­das as falsas denúncias feitas pelo delegado. Durante esses três lon­gos e silenciosos anos, os camara­das Ian Caetano e João Lennon, assim como eu, sofremos com cautelares absurdas e abusivas: não podíamos sair de casa após as 22h e nem em fins de semana ou feriados e a mais absurda de todas, a prévia proibição em par­ticipar de qualquer manifestação, protesto, ato ou reunião com fina­lidade de organizar qualquer ati­vidade política. Agora essa tor­tura, enfim, acabou. Sobre esse acontecimento, o coletivo de mi­diativismo Desneuralizador, fez o documentário: Operação 2,80 – A revolta popular só aumenta – dis­ponível no youtube.

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