“O reino da quietude que os sábios conquistam pela meditação é também conquistado pelos que praticam ações. Sábio é aquele que compreende as duas coisas. A intuição mística e a ação prática são uma só em sua essência”. Assim falava Krishna para Ajurna, no Bhagavad Gita. Uns três mil anos mais tarde, Marx dirá a mesma coisa, mas em linguagem filosófica de cariz hegeliano.
Recentemente, alguém publicou duas proposições, uma ao lado da outra, perguntando qual delas estava correta, se a de Descartes (“Penso, logo existo”) ou se a de Nietzsche (“Existo, logo penso”). As duas estão corretas. Uma é dedução, a outra é indução. Mas esta aparente oposição é suficiente para gerar debates incandescentes e fazer correr rios de sangue. E os dois partidos sempre poderão brandir argumentos excelentes que se anulam mutuamente.
Marx, porém, diria: “A questão não se resolve na teoria, mas na prática”. Ao vencedor, as batatas. Marx completou 200 anos de idade no mês passado e a data foi amplamente celebrada. Por falta de tempo, não pude vir à festa. Trago agora o meu presentinho.
A unidade dialética entre teoria e prática, pensamento e ação, preconizada pelo Bhagavad Gita, foi a grande conquista do Marxismo. A filosofia da práxis cortou o nó górdio de muitos e angustiantes dilemas filosóficos. Os filósofos interpretam o mundo de diferentes maneiras; cabe transformá-lo, escreverá Marx num caderno de rascunho, para seu próprio uso. A famosa 11ª Tese Contra Feuerbach resume o espírito do marxismo. No entanto, muitos marxistas nunca chegaram a compreender esta máxima.
Não é uma questão de ler montanhas de livros sobre Marx. Não é questão nem mesmo de ler toda a obra de Marx. Só quem se lança na luta política, só quem vivencia a luta de classe pode entender isso, não necessariamente como uma doutrina, mas como uma iluminação. Quando escreveu isso, Marx teve o seu satori. Ele não sabia, mas estava sintonizado com o espírito do Zen.
Durante a celebração dos 200 anos do nascimento de Marx, falou-se de tudo a respeito. De um lado, condenações histéricas da direitas troglodita. De outro, hagiográficas babações de ovo. Aristotelicamente, tomo o caminho do meio.
É lamentável que, no Brasil, o promissor debate iniciado por Sartre, nos anos 60, sobre marxismo e existencialismo, não tenha tido consequência intelectual nem efeito político. Engessado no “marxismo leninismo” dos PCs tradicionais, ou desnaturado num arremedo de gramicismo pelos marxistas de cátedra, os tais que são comunistas de gabinete, a aguda visão totalizante de Marx virou uma detestável ortodoxia.
Marx foi o fundador de uma escola de pensamento, como Platão e Aristóteles. O que Sarte propôs é que a moldura teórica do marxismo fosse ampliada pela agregação de novos saberes. Para Sartre, o pensamento de Marx era a grande filosofia de nosso tempo, como foram a de Descartes e de Hegel em suas respectivas épocas, só podendo ser superada quando abolidas as contradições materiais que a engendraram. Enquanto o capitalismo existir, o pensamento de Marx terá plena vigência.
Mas isto não quer dizer, segundo Sarte, que Marx está completo, e até mesmo que não possa ser corrigido. Romper a barreira das ortodoxias e das versões vulgares seria injetar no pensamento revolucionário e libertário o necessário sangue novo que daria mais força ao velho corpo de doutrinas a que Engels chamou de “materialismo histórico”. Entre outras sugestões, Sartre, que nem era muito chegado a Freud, preconizava o encontro do marxismo com a psicanálise.
Foi nas obras de Marcuse e Norman O. Brown, os principais mentores da juventude rebelde dos anos 60, que se deu o choque inevitável das duas mais poderosas correntes de pensamento engendradas pela cultura ocidental. A questão está longe de ser resolvida. Ainda não se chegou a um acordo sobre a prioridade acerca das categorias que Freud e Marx nos legaram para a compreensão do ser humano. Como escreveu Teodore Roszak, em Contracultura, nem a psique nem a luta de classes podem ser dispensadas. A qual delas devemos dar precedência?
Conforme Roszak, tanto Marx como Freud afirmaram que o homem é vítima de uma falsa consciência, da qual deve se desfazer para que alcance a libertação. Para Marx, o que está oculto à razão é a realidade opressiva e exploradora do sistema social. A “ideologia” se coloca entre a razão e a realidade para encobrir, sob o espesso véu de Maya das ideologias mistificadoras, com sua lavagem cerebral, o odioso interesse de classe.
Para Freud, o que está oculto à razão é o conteúdo do inconsciente, sendo o papel da Cultura não o apenas mascarar a realidade social, mas também de colocar como uma tela onde se projeta seu vasto repertório de “sublimações”. A cultura é uma fraude. No seu sereno pessimismo, determinado por um mundo em guerra que tinha liberado os mais sinistros e destrutivos instintos humanos, Freud não levava fé na possibilidade da razão humana compreender a fonte reprimida dessas ilusões culturais e aceitá-la como é.
Será a psique, como diria Marx, mero reflexo superestrutural do modo de produção material? Ou a estrutura social, como pensava Freud, é apenas um reflexo dos nossos conteúdos psicológicos? Marcuse e Brown estavam profundamente divididos quanto a esta questão.
“A contribuição prestada por Marcuse e por Brown, ao empreender esta nebulosa polêmica, está na tentativa de desenvolverem uma crítica social radical a partir de princípios psicanalíticos”, escreve Roszak. Ambos concluem que, como o resto de nossa cultura, a política pertence à esfera do patológico. Quando o general Villas Bôas, que por certo nunca leu nem Marcuse nem Brown, chamou os intervencionistas de “malucos”, acabou sem querer acertando na mosca. Não há como entender essa gente fora das categorias psicológicas.
É claro que a publicação dos escritos juvenis de Marx, mais de 50 anos depois da morte dele, teve profunda influência tanto em Marcuse como em Brown. Por pobres que pareçam, estes escritos – que Lênin, por exemplo, nunca leu, porque estavam inéditos – fundaram o chamado “humanismo marxista”.
Apesar da sua proibitiva obscuridade hegeliana, há nesses escritos um generoso interesse pelo indivíduo. O jovem Marx não se envergonha de falar de música, de amor, de recreação, da beleza, da vida, dos prazeres dos sentidos. “Há, nesses ensaios, uma grande finura psicológica”, atesta Roszak. Algo diferente, bem diferente, do patético formalismo da fase madura, “científica”, da obra Marxiana, tão imersa em, estatísticas industriais, relatórios financeiros e todo aquele vasto material colhido nos arquivos ingleses para a composição de O Capital.
Para Marcuse, comunista da velha escola, há uma inegável continuidade da obra de Marx. Seu humanismo não pode ser confinado em suas obras juvenis. Para Sarte, no entanto, este humanismo vai mais além do corpus marxista. Está, sobretudo, no encontro do materialismo dialético com o existencialismo. Assim, o marxismo, na visão sartriana, é obra aberta, em construção. Mas o fio de prumo que a manterá de pé não pode ser outro senão a praxis: ação e teoria. Quem sabe faz a hora, não espera acontecer, dirá o nosso Vandré.
Glauber Rocha, no seu jeito debochado de ser, tocou neste ponto exato, numa histórica entrevista a Luiz Carlos Maciel publicada décadas atrás em O Pasquim. Vamos ouvi-lo: “O racionalismo é uma interpretação jurídica da Razão. Aliás, Kant e Hegel deixaram isto bem claro. Quando Marx derrubou as teses de Feurbach, estava naturalmente de saco cheio de uma especulação pura que, no fundo, divertia os donos da jogada. Foi preciso trazer a filosofia para a grossura do dia a dia, a fim de que os repressores armados vissem que a mente em ação valia mais do que as armas. Marx foi um prático, pelo menos, foi o que fizeram dele. O bicho sacou outas de maior sutileza, mas estas ficaram encostadas”.
Essas outras “de maior sutileza” serão objeto de outra crônica. Aguarde! Enquanto isso, deixe o leu láique.