- Um artista do povo, pioneiro da capoeira Angola em Goiás e da inclusão de meninos de rua através do esporte
_ Professor, tem visto o Sabú? Faz tempo que não o vejo.
_ Você não soube? Sabú morreu. Tem mais de um ano!
Foi assim que, semana passada, fiquei sabendo do passamento de um velho e querido amigo. Mais do que um amigo, ele foi meu mestre. Parafraseando velha canção de Pastinha: “Menino quem foi teu mestre? /Meu mestre foi o Sabú. / Capoeira me ensinou, /no terreiro da Redenção...”
Tempos atrás, depois de anos sem o ver, encontrei Sabu em um evento no Palácio das Esmeraldas, durante o governo de Alcides Rodrigues. Era um desses eventos promovidos pelos movimentos de valorização do negro. Sabu, que também tem sangue índio – desconfio eu – lá estava, elegantíssimo num terno de linho branco, camisa vermelha e gravata branca, anéis no dedo e chapéu panamá. Não fosse pela carapinha branca, diria que continuava a ter seus trinta e poucos anos. Continuava atlético, como nos tempos que encantava a rapaziada que ia aos domingos vê-lo jogar e cantar na Feira Hippie.
Portava uma bengala. Julguei que fosse charme, porque o nego sempre fora vaidoso. Ele me explicou que estava com um problema sério em uma das pernas. Pior. Precisava levantar uma grana para custear a operação. Tinha que fazer a operação sob pena de ter que amputar a perna.
Falei com meu amigo e confrade Marcus Vinícius Felipe de Faria, que então presidia a Agecom. Ele encaixou Sabu em um programa noticioso da RBC e mandou que se fizesse uma campanha em prol do encanecido mestre de capoeira. Levei Sabu em meu carro até o estúdio. Sempre bem humorado, poi sera dos eu feitio estar sempre de bom humor, ele falou da vida dele, da capoeira e de outros babados. Pouco depois de encerrar o programa, Sabu já tinha levantado uma bolada boa.
Depois do programa, eu o deixei em sua casa, num bairro distante de Aparecida de Goiânia. No caminho, conversamos muito, lembrando os bons tempos. E dos tempos de agora. Há muito ele deixara de jogar capoeira, por causa do problema na perna, resultado, segundo ele, das noites mal dormidas dentro de um carrinho no estacionamento da torre de TV de Brasília, onde ele ia todos os fins de semana vender seus berimbaus.
“Fui fazer a praça de Brasília porque a Feira Hippie já não dava pé, tinha saído da Praça Cívica e virado uma coisa sem sentido”, explicou-me. Ele criou na “Torre” uma roda de capoeira animadíssima. Todo mundo ira lá jogar, cantar, se divertir. Sabu jogava, tocava berimbau, e cantava, dando preferência ao repertório de Caiçara, que o formou.
Em certa época, depois de fechar o seu “terreiro”, na Vila Redenção, ele ganhou a vida comprando e vendendo carro usado, na Praça do Avião. Cansei de vê-lo por ali, aquela alegria imensa, fazendo aos motoristas que passavam aquele gesto com os dedos da mão, que se traduz por “quer vender?”. Nos últimos tempos, ele vinha defendendo uns coverts como cantor de boleros em uma casa noturna de Aparecida. Sabu era surpreendente.
Sabu só não foi o pioneiro da capoeira em Goiás porque, antes dele, Mestre Osvaldo, um baiano que foi discípulo de Bimba, abriu academia de Regional no Centro de Goiânia. Mas o primeiro angoleiro mesmo foi Sabu.
A Regional é uma capoeira mais objetiva, pragmática, mais voltada para a defesa pessoal. Já angola é outra doutrina. Preserva a malemolência, as acrobacias e a brejeirice da capoeira dos antigos malandros da beira do cais da Bahia. Foi codificada por Mestre Pastinha, que, já velho e cego, conheci em sua academia no pé da ladeira do Pelourinho. Mas cada um dos venerandos mestres baianos tinha, dentro da angola, seu próprio estilo, suas próprias regras: Canjiquinha, Traíra, Caiçara, outros tantos.
Sabu, que nasceu Manoel Pio Salles em na velha cidade de Goiás, inciou carreira de lutador na Luta Livre, nos tempos em que o Catch faz sucesso na TV. Ele lutava mascarado, tendo adotado o nome de Sabu, um personagem de gibi. Depois se mandou para Salvador. Ficou uns anos por lá, aprendendo com Caiçara. Quando voltou, no finalzinho a década de 60, estabeleceu-se meste de capoeira e artesão de instrumentos musicais. Usava o quintal de sua casa na Vila Redenção, o “terreiro”, para formar o seu grupo.
Exibindo-se nas escolas, nos programas de TV, e aos domingos na Feira Hippie, logo ele formou uma grupo enorme de alunos. Sabia ensinar. Tinha paciência. E tratava seus alunos como se fossem seus filhos. A casa dele era a nossa casa. Ás vezes, até filávamos a boia. Além do grupo de capoeira, ele formou um grupo de maculelê e até um grupo de dança dos tapuios, esta última uma manifestação folclórica genuinamente vilaboense.
Não fosse ele um grande atleta, um inspirado artista e grande promotor do folclore, ele foi, naqueles tempos de ditadura atroz, um homem enjangado politicamente. Tinha uma extraordinária sensibilidade social. Embora fosse homem de poucas letras, ficava indignado com a negligência da autoridades em face da menoridade abandonada.
Ele procurou tirar pivetes da rua para, através do esporte, integrá-los à sociedade. Chegou a levar dezenas deles para morar em sua casa. Alguns desses moleques se tornaram exímios capoeiristas. Não sei por onde andam.
Também prestou auxílio à família de Bimba quando o velho mestre Baiano morreu, em Goiânia, para onde se transferira com suas duas mulheres e um batalhão de filhos e agregados. E também acudiu mestre Osvaldo, quando este chegou ao fim da vida. Para Sabu, a rivalidade entre Regional e Angola ficava restrita às rodas de capoeira. Fora dela, eram todos um pelos outros.
Este trabalho social foi a ruína financeira de Sabu. Seu projeto, de uma generosidade comovente, e evidentemente utópico, não poderia mesmo dar certo. Ninguém o ajudava. Ele tocava sozinho a ingente tarefa de transformar meninos de rua em cidadãos de bem, numa época em que a ditadura olhava com desconfiança hostil toda iniciativa de inclusão social. Também nisso, ele foi um pioneiro. Emílio Vieira registrou esta experiência de Sabu em seu livro “Na roda do Berimbau”. Um clássico da antropologia brasileira.
Sabu se foi, para nossa profunda tristeza. Tinha apenas 76 anos. Deixou legiões de amigos, admiradores, ex-alunos, muitos deles por aí ensinando a capoeira de Angola.
Goiânia tem uma dívida com Sabu, assim como tem com Hugo Nakamura, o pioneiro do Judô, com Pedro Mizukami, o pioneiro do Katatê. E com Tarzan, o pioneiro do fisiculturismo. Os vereadores de Goiânia deveriam dar à principal avenida da Vila Redenção o nome de “Avenida Mestre Sabu”. Fica aqui a sugestão, que deverá cair no vazio já que esta legislatura não teve coragem de homenagear Bernardo Elis, nosso maior escritor, com o nome de alguma avenida em Goiânia. Olhaí, Kajuru: você que sempre foi do esporte, pode aproveitar esta sugestão que lhe dou de graça. Ou você também é omisso como seus pares?
E viva meu mestre! Eh, viva meu mestre, camarada!