Imagens que se comportam como fragmentos. Elas são a ferramenta de trabalho do fotógrafo colombiano Juan Orrantia. Através delas, ele cria um panorama visual que conta histórias de sociedades que passam por momentos de complexidade, como sequelas de narcotráfico, disputas de território e, acima de tudo, o medo, a violência e a sobrevivência cotidiana dentro destes parâmetros. O recheio de seus documentários é composto principalmente por resquícios da história recente dos locais que visita, e evoca no público a sensação de narrativa indireta, onde elementos de diversos significados esculpem ideias que se atraem e se repelem, apelando por certa neutralidade, impedindo o protagonismo da crueza dos conflitos.
O fotógrafo nasceu em Bogotá no ano de 1975. Vive em Joanesburgo, na África do Sul, desde 2009. É conhecido por seu longo processo de imersão nos locais que escolhe como cenário de trabalho. Passou quatro anos fotografando Moçambique na série There was heat that smelled of bread and dead fish, e também registrou a vida pós-independência de Guiné Bissau na série Why Would, desenvolvida a partir de 2012 – ambas as nações são ex-colônias de Portugal, e têm incomum com o Brasil a língua. Sobre sua terra natal, Orrantia tentou traduzir ao mundo a influência do famoso narcotráfico (que até hoje norteia os estereótipos do mundo a respeito da Colômbia), produzindo duas séries: Normalcy, de 2009, e seu mais recente trabalho, Bittersweet Forrest.
Em várias ocasiões, diante de entrevistadores interamericanos, Orrantia via-se no impasse de explicar a quebra de expectativas da mídia distante, sedenta por cenas chocantes que justificassem, por exemplo, a truculência da famosa guerra entre o governo colombiano e forças paramilitares em meados da primeira metade dos anos 2000. Nas imagens da série Bittersweet Forrest, de 2017, que busca retratar “A vida após a morte dos sonhos da coca”, ele mostra que não se trata de escancarar o terror da guerra, mas de, através de uma união de tangentes que mostram a continuidade do ciclo da vida e da presença humana em determinado lugar, entregar à história momentos de um processo de reconstrução contínuo e dirigido pelo próprio tempo.
COLÔMBIA
Na série Normalcy, Orrantia mostra a vida na pequena cidade de Nueva Vencia, no norte da Colômbia. Ele começou a trabalhar na série em 2006, seis anos depois de um tragédia divisora de águas na vida local. “No dia 22 de novembro de 2000, a pequena cidade foi invadida por milícias paramilitares. Por mais de 4 horas eles permaneceram matando homens seletivamente. A cidade de pescadores pobres, que fica no meio do Pântano, acordou algumas horas depois com mais de 20 corpos na frente da igreja e vários outros espalhados pela água”, conta o texto que introduz a série, escrito pelo próprio Orrantia. O objetivo do fotógrafo era “documentar os espaços íntimos e momentos da vida seis anos após o terror”.
Uma década depois, dessa vez em Sierra Nevada de Santa Marta, local que esteve sob controle do paramilitar Hernán Giraldo até meados de 2006 (1.167 homens estavam sob suas ordens àquela altura, e estima-se que ele seja responsável por mais de 67 mil mortes). Em entrevista à revista Yet, publicada em março deste ano, Orrantia falou sobre sua experiência na concepção da série Bittersweet Forrest. “Muitos anos depois [dos conflitos] decidi que queria confrontar meus próprios medos, meu imaginário daqueles tempos complicados que vivemos, de diferentes maneiras. Para mim era como confrontar uma realidade que eu odiava e temia, e tudo se encaixava nesse lugar”, explica.
De acordo com o fotógrafo, tudo aconteceu através da resiliência do tempo e do convívio prolongado com a vida local. “No decorrer do processo, eu vi que também existia uma história local de memória, um lugar preenchido com traços e marcas, e que como um cara da cidade eu não sabia realmente como era a vida para aquelas pessoas, submetidas às vontades do senhor da guerra paramilitar”, conta. A partir dessa constatação, Orrantia deu início a um processo profundo de escaneamento, permitindo-se sucumbir ao frisson do encontro com aquele local antes censurado. “Realmente perambulei por ali e fotografei o que para mim tinha sido um local quase proibido, focando minhas próprias ideias de histórias que ouvi e coisas que me lembrei de ter visto”, conclui.
GUINÉ BISSAU
No pequeno país, que fica na costa oeste da África, o fotógrafo conseguiu encontrar a pessoalidade que não o arrebatou durante seu trabalho em Moçambique. Alguns pontos foram essenciais para o gatilho dessa empreitada. “Pensei em seguir a presença do narcotráfico na Guiné Bissau, onde os meios sensacionalistas não duvidavam em deixar claro que existia uma presença colombiana no território, o que me chamou a atenção”, disse Orrantia em entrevista ao veículo colombiano Punto de Fuga. Outro grande incentivo para o fotógrafo na hora de escolher seu destino foi o documentário Sans Soleil (1986), do cineasta Chris Marker. O documentário, que mostrava a região como um polo de resistência ao neocolonialismo sob liderança de Amílcar Cabral.
Na introdução da série Why would…, ele explica o contexto da obra. “Naquele ponto a Guiné Bissau era um local de esperança que compartilhava estratégias de solidariedade anticolonial com países como Cuba e Brasil. Mas as coisas não continuaram daquela forma. Cabral foi assassinado e uma série de traições começou. Hoje, o país é considerado um estado falido, caracterizado por uma política volátil, pobreza e corrupção, além de ser considerado o primeiro ‘narco-estado’ por ser a ponte que liga a distribuição da cocaína sul americana até a Europa”. Décadas depois da morte de Amílcar Cabral, Orrantia assumiu a missão de “falar sobre um desdobramento da história, da forma que os sonhos foram enterrados pela passagem do tempo”