Ele deixou registrado o seu tempo em pinceladas dotadas de uma ingenuidade comovente, mas sagaz. Assim foi Octo Marques, que morreu há 30 anos e pintou sua antiga Vila Boa como ninguém. Com pitadas primitivistas e toques expressionistas, captou não apenas as belezas arquitetônicas e naturais da cidade de Goiás, como as tradições populares e a alma de seu povo. Assim tornou-se um nome caro da arte goiana, mas é fato que poucas iniciativas até hoje invocaram sua memória e lhe deram devido valor. Mas a exposição “Restauro Octo Marques Centenário Octo Marques” chegou para preencher essa lacuna.
Após quase um mês em cartaz no Museu das Bandeiras (Mubam), de Goiás, será aberta hoje, às 19h30, em Goiânia. E no Centro Cultural Octo Marques (CCOM), no Parthenon Center, fica aberta até o dia 21 de setembro. O projeto é da Balaio Produções Culturais e da Associação de Artesão e Artistas Amigos de Goiás - Aaamigos, conta com recursos da Lei Goyazes e do Fundo de Arte e Cultura de Goiás.
Ao todo são 11 telas contendo temáticas regionalistas, com detalhes de cunho social, ambiental ou arquitetônico agregadas e produzidas entre os anos de 1976 e 1985. São 10 telas coloridas, de tinta sobre tela, e um desenho em bico de pena, em papel. Os tamanhos das telas variam entre 22 centímetros e 1 metro de largura, por alturas que variam entre 16 e 73 centímetros.
E vale lembrar que a mostra só foi possível graças a um trabalho minucioso de restauração feito pela restauradora Cássia Reis. Pois as peças da exposição, vindas de acervo particular, estavam em um grau avançado de deterioração pela ação do tempo. “As obras estavam apresentando algumas patologias, como sujidades, desprendimento da camada pictórica, craquelamento, perda de suporte, e acentuado ataque biológico, além de problemas estruturais”, detalha Cássia Reis.
A restauradora, assim como o artista. Como uma boa vilaboense, Cássia já conhecia e admirava o trabalho e estilo de vida simples e humilde do homenageado, a quem chama, respeitosamente, de “seu” Octo Marques. No entanto, ela conta que realizar este trabalho promoveu um encontro mais profundo com a arte do pintor, e hoje o admira ainda mais.
“O Octo Marques, pelo pouco recurso que ele tinha, a vontade dele, como artista, tendo uma alma livre, liberta e sensível, ele reproduzia tudo aquilo que ele vivenciou. Todas as emoções em que ele vivia. Ele tinha uma noção espacial, social e ecológica muito grande”, destaca.
Outro ponto que mexeu com a restauradora durante a composição da mostra foi a forma como o artista guia o olhar do espectador para um viagem pictória, mesmo sem ter passado nenhum estudo erudito. Octo Marques era autodidata. “Ele absorvia aquilo que possuía de mais natural, que era a simplicidade, com um olhar extremamente crítico”, elogia.
TALENTO SEM GLÓRIA
Porém, é fato que mesmo dotado de tanta sensibilidade para traduzir o contexto que vivia, os dons não foram reconhecidos como deveriam em seu tempo. “O Octo Marques não teve o valor artístico necessário em vida. Ele possuía um perfil extremamente criativo fora dos padrões exigidos e contemplados pela sociedade de sua época”, indigna-se a restauradora.
Por isso, ela conta que muitas vezes Marques não teve condições financeiras viáveis para concretizar a grandeza de sua arte. Cássia explica que Octo foi até pormenorizado pelo que pode ser considerado como um de seus trunfos: a utilização de materiais acessíveis à sua condição de vida. “Ele fez da arte pictórica uma alquimia”, declara.
ACESSIBILIDADE
Como a mostra trabalha para dar mais luz à obra de Octo Marques, a organizadora do evento, a Balaio Cultural tratou de dar jeito de que todos pudessem contemplar o trabalho desse artista. Até mesmo os deficientes visuais. Todas as obras escolhidas para fazer parte desta exposição, além de terem sido higienizadas, restauradas e colocadas em molduras apropriadas, também foram replicadas em telas táteis.
As telas táteis são cópias da pintura original, mas com uma aplicação de tintas em alto relevo, próprias para serem tocadas. Além disso, todas as obras também contam com uma legenda em braile que descreve informações técnicas e históricas das telas.
“Neste tempo em que estamos, é necessário que saibamos que o direito de usufruir de bens culturais é de todos. Precisamos compreender que existem demandas diferentes, por exemplo, para pessoas com deficiências e que elas também precisam ser contempladas em todas as áreas da nossa sociedade. É uma questão de respeito e de cidadania. Estamos muito orgulhosos por termos feito esse trabalho e ele ter repercutido de maneira tão positiva”, disse a produtora Luana Otto.
QUEM FOI OCTO MARQUES
Nascido em 1915, na cidade de Goiás, então capital do Estado, a importância de Octo Marques está relatada em livros e matérias que relembram sua trajetória. O escritor José Mendonça Teles (1936-2018) o descreveu como um dos artistas que se destacaram em Goiás no século 20. O jornalista Jaime Câmara (1909-1989), em 1978, escreveu que o artista dispensava apresentações e ocupava um lugar de relevo nos meios intelectuais goianos. Historiadores destacam a ligação desse criador com sua terra natal, fonte de suas criações iconográficas e literárias.
Autodidata em Desenho, Pintura, Xilogravura e Cerâmica, Octo também foi jornalista e contista. Foi fundador da Associação Goiana de Imprensa (AGI) e da Escola de Artes Veiga Valle, na cidade de Goiás. Começou sua carreira de artista aos sete anos, pintando cenas de ex-votos para os romeiros das festas de Trindade. Em 1934 se mudou para o Rio de Janeiro, onde foi colaborador e ilustrador da revista Vida Doméstica. Em 1936, já em Campinas, São Paulo, cursou o Instituto Cesário Motta e operou como foca nos principais órgãos da imprensa local. No ano seguinte mudou-se para a capital paulista, onde trabalhou como revisor de O Estado de São Paulo. Em 1938 voltou ao Estado de Goiás, burocratizando-se em Goiânia como escriturário na extinta Diretoria Geral de Produção e Trânsito. Passou a residir no bairro de Campinas, onde voltaria em outras ocasiões. Em 1943 demitiu-se do emprego público e retornou à Vila Boa, onde em 1945 empregou-se na Prefeitura Municipal de Goiás. Se aposentou em 1973. Durante todo esse tempo, colaborou ainda nos jornais Folha de Goyaz e O Popular.
Apesar da trajetória profissional e artística consistente, Octo Marques levou uma vida sacrificada, passou por episódios de preconceito e discriminação relativos à sua maneira humilde de se portar no mundo (O Mendigo de Deus), e morreu em uma espécie de autoexílio, sem riquezas, poder ou repercussão.
SERVIÇO:
Restauro Octo Marques “Centenário Octo Marques”
Abertura: 24 de agosto (sexta-feira) - 19h30
Visitação: até o dia 21 de setembro
Onde: Centro Cultural Octo Marques, no Parthenon Center (Rua 4, 515 - St. Central)
Entrada franca