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ENTRETENIMENTO

O maldito poeta anarquista

“Tudo muda e nada muda”. Com licença, meus caros, pois esta é a poesia de Lawrence Ferlinghet­ti, 99. Lançado em 1958, na livra­ria City Lights, em São Francisco, a obra Um Parque de Diversões, a qual esses versos fazem parte, é tida como um de seus livros mais cultuados do expoente da geração beat. Na poesia ferlinghettiana é comum abordagens de temas com cunho políticos e sociais. Durante a década de 1980, publicou o roman­ce Amor e revolução, que narra a história de um banqueiro revolu­cionário que vivia em conformida­de com o espírito burguês.

Apesar de começar esta maté­ria citando um poema que faz par­te de Um Parque de Diversões, não quero propriamente discorrer sobre isso. Após mergulhar de cabeça na bibliografia dos beats Allen Gins­berg, William Burroughs e Jack Ke­rouac, inclusive provando algumas experiências tal como os mestres fizeram outrora, umas publicáveis, outras nem tanto, consigo parar um momento e refletir: a literatura beat é sim coisa de primeira. E o livro Amor nos Tempos de Fúria, lança­do no Brasil em 2012, segue nes­sa mesma toada e, com isso, fisga o leitor da primeira à última linha.

Paris, 1968. Os estudantes da uni­versidade parisiense Sorbonne toma­ram as ruas para protestar, discursar e pichar palavras de ordem contra o ge­neral Charles De Gaulle, reacionário que combatera na Segunda Guerra. A eles uniram-se trabalhadores, artis­tas e músicos, sendo o estopim para uma das maiores revoltas da história. Com esse pano de fundo, Ferlinghetti idealiza o encontro entre Annie, pin­tora estadunidense, passional e idea­lista, e Julien, um cético banqueiro português que se diz anarquista de coração, assim como no famigerado livro Banqueiro Anarquista, de Fer­nando Pessoa, publicado em 1922.

O escritor demonstra todo seu ta­lento para a prosa ao narrar a com­plicada história entre Annie e Julien. Entrelaçando um enredo íntimo de seus personagens com conflitos so­ciais que aconteceram naquele pe­ríodo, Ferlinghetti faz também uma espécie de síntese das questões políti­cas, sociais e artísticas que marcaram toda uma geração. Em Montparnas­se, no La Couple, em Paris, no fim da noite, o leitor logo nas primeiras pá­ginas é apresentado à protagonista. Narrado em terceira pessoa, em flu­xo de consciência, o beat coloca-nos no centro do caos que estava instau­rado na cidade da luz.

TÔNICA

Críticas aos sistemas totalitários, como ao fascismo do ex-socialista Be­nito Mussolini, que vigorara na Itália durante a década de 1930, e ao na­zismo do artista plástico frustrado Adolf Hitler, que provocara a Segun­da Guerra Mundial, são a tônica de vários textos que Ferlinghetti escre­veu ao longo das últimas seis décadas. Lê-lo é indispensável nesses tempos emqueoautoritarismovemganhan­do força na sociedade brasileira com candidaturas caricatas que semeiam discursos de ódio e fazem uma ode de extremo mau gosto à Ditadura Militar.

Em entrevista concedida ao jornal Folha de São Paulo, no dia 7 de setembro de 2016, Ferlinghet­ti disse que o anarquismo – ideo­logia política que teve Mikhail Ba­kunin como principal expoente – sempre foi um ideal, e não uma ideologia. “Ele nasceu no século XIX, e nessa época o mundo não tinha um terço das pessoas que tem hoje. O anarquismo era pos­sível quando não havia popula­ções grandes”, explicou, na oca­sião. “Mas hoje, a não ser que você tenha alguma forma de governo, as pessoas vão acabar matando umas às outras. De qualquer for­ma, é isso que começa a aconte­cer”, disse.

Sobre a autobiografia One Stream of Consciousness que está escrevendo, aos 99 anos, Fer­linghetti contou que o ideal seria chamar a obra de “romance-me­mória”. “A parte autobiográfica é desde quando sou menino e segue até tudo o que tenho a dizer como adulto. No fim das contas, sou uma criança que ficou velha e está qua­se cega. Esse é o fim. Não é ficção, é vida real. Não gosto do termo fic­ção, você diria que Cem anos de So­lidão é uma ficção?”, completa. O poeta disse ainda que “o poeta por definição é um inimigo do Estado”.

Na entrevista, Ferlinghetti falou que o escritor William Burroughs, autor do clássico Almoço Nu, de 1959, “era como tanto outros doi­dões” na época em que os beats frequentavam a livraria City Lights. “Achei que expressava uma men­talidade de doidão, cheia de mor­te e ódio. Burroughs era “el hom­bre invisible”, veio à livraria mais de uma vez para fazer leituras, mas você via que ele não estava lá. Era como tanto outros velhos doidões, que estão presentes fisicamente, mas não estão presentes de fato. Eu nunca entrei na mesma onda que ele”, comentou à Folha.

VIDA

Lawrence Ferlinghetti nasceu em Yonkers, no Estado de Nova Ior­que, em 1919. Filho de italianos, seu pai morreu antes dele nascer, e sua mãe foi internada em função de problemas nervosos quando o poeta ainda era pequeno. Foi cria­do por uma tia materna e passou cinco anos de sua infância na Fran­ça. Ao retornar para os Estados Uni­dos, ingressou em várias escolas até entrar na University of North Caro­lina, onde estudara Jornalismo. Pu­blicou suas primeiras histórias na revista cultural Carolina Magazine.

Durante o verão de 1941, Fer­linghetti morou com amigos em uma pequena ilha no Maine. A experiência o aproximou do mar, que se tornou um dos temas re­correntes em sua obra. Em se­guida, entrou para a marinha norte-americana. Serviu na Se­gunda Guerra Mundial, partici­pando da invasão da Norman­dia, na França. Depois trabalhara por um breve período na revista Time, antes de voltar para a Co­lumbia University, de Nova Ior­que. Nela, conseguiu a titulação de mestre em literatura ingle­sa. Doutorou-se pela Sorbonne, em 1950, com menção honrosa.

Retornou para o EUA, em 1951, onde instalou-se em São Francisco. Passou a dar aulas de francês, tradu­zir, pintar e fazer crítica de arte em jor­nais. As primeiras traduções que fez foram publicadas na revista cultural City Lights, por Peter D. Martin, que se tornaria sua sócia na mítica livra­ria de mesmo nome. Um ano depois da saída de Martin, fundou a editora City Lights e lançou sua primeiro li­vro, Pictures of the Gone World, pri­meiro volume da Pocket Poets Series.

POEMA

Tudo muda e nada muda.

Séculos findam

e tudo continua

como se nada findasse.

Como nuvens estáticas a meio-vôo

Como dirigíveis presos contra o vento.

E a urbana febre das feras do cotidiano

ainda domina as ruas. Mas ouço cantarem

ainda agora as vozes dos poetas

mescladas ao grito das prostitutas

na velha Mannahatta

ou na Paris de Baudelaire,

chamados de pássaros ecoam

nas ruelas da história

renomeados.

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