Não é exagero afirmar que os serviços de streaming estão mudando a dinâmica de convivência em muitas famílias. A possibilidade da utilização de diversas plataformas, como celulares e laptops, transformou o conceito de sala de estar - que não é mais aquele local em que todos se reúnem para assistir a um único programa ou filme.
Além de ressaltar individualidades, o streaming nos ensinou a “maratonar” e nos fez perder a paciência com o chamado “intervalo comercial”. Claro, a consequência dessa revolução tecnológica e comportamental trouxe um novo gasto mensal - já considerado fixo e básico por muitos usuários.
Vejam o caso da família dos empresários Bruno Carramenha, 36 anos, e Márcio Uesugui, 31 anos, pais da produtora cultural Débora Bueno, 21 anos, e de Wesley Carramenha, 10 anos. Assinantes de três serviços de streaming, eles estão prestes a contratar uma quarta opção. “Em casa, cada um desenvolveu um hábito diferente. O Márcio, por exemplo, gosta de ver séries e documentários pelo celular, antes de dormir. A Débora usa muito o Laptop. Já o Wesley é quem assiste a desenhos no sofá da sala”, contou Carramenha.
Por enquanto, com a assinatura de Netflix, Amazon Prime e Globoplay, a família tem um gasto estimado de R$ 100 mensais. Apesar disso, já existe uma previsão de gastar um pouco mais - com o desejo de assinar o Disney +. “Sonho com o dia em que irão lançar um serviço com todos os serviços de streaming em um só pacote. Você paga, sei lá, R$ 180, e leva tudo o que existe em termos de streaming”, comentou Carramenha.
Para a família, a opção pelos serviços de streaming vai além do entretenimento. Márcio Uesugui, por exemplo, tem uma marca de roupas e acessórios e acredita estar “mais antenado” com as tendências acompanhando os lançamentos de filmes e séries. Além disso, séries e documentários do universo LGBTQIA+ são usados por Carramenha e Uesugui como fontes de referência para o próprio trabalho de influenciadores digitais no Instagram Papais a Bordo (@papais_a_bordo).
Já a família da advogada Caroline Nogueira, 27 anos, assina cinco serviços de streaming - e estima um gasto mensal de R$ 150. “No passado, minha família usou muito videolocadoras. Lembro muito de ir para uma locadora na sexta-feira e alugar filmes para todo o fim de semana. De alguma forma, os serviços de streaming trouxeram esse passado de volta, acho que substituem as locadoras”, contou Caroline.
“Sonho com o dia em que irão lançar um serviço com todos os serviços de streaming em um só pacote. Você paga, sei lá, R$ 180, e leva tudo o que existe em termos de streaming” - Bruno Carramenha, empresário
Apesar de cada membro da família se identificar com um estilo diferente de entretenimento, Caroline afirmou que a variedade de opções fez com que eles “trocassem mais figurinhas sobre cinema e séries”. “O que acontece é que a gente acaba influenciando o gosto um do outro. Eu indico uma séria para minha mãe; ela me fala de algo que assistiu e gostou muito…”, enumerou.
“No passado, minha família usou muito videolocadoras. Lembro muito de ir para uma locadora na sexta-feira e alugar filmes para todo o fim de semana” - Caroline Nogueira, advogada
Atualmente, na casa de Caroline a TV aberta está reservada apenas para eventos, a maioria deles esportivos, como uma corrida de Fórmula 1, jogo de futebol e, eventualmente, noticiário.
Para quem divide apartamento, como é o caso da relações-públicas Beatriz Barrocal Fernandes, 23 anos, e a economista Raquel Guardia, 26 anos, existem facilidades econômicas. Elas vivem em três pessoas e, atualmente, assinam quatro plataformas (mas já estão pensando em uma quinta opção). “Em casa, cada um paga um serviço ou dois. Além do mais, dividimos senhas para que cada uma tenha acesso a todos os serviços”, contou Beatriz.
A variedade mantém a paz no apartamento. Já que Raquel prefere filmes de terror; enquanto Beatriz gosta de romances e “coisas fofas”. Apesar das diferenças, as duas concordaram em abandonar a TV aberta. “Eu nem lembrava que existia intervalo comercial”, disse Raquel. “Assistir à novela sem os intervalos é uma experiência completamente diferente”, completou Beatriz.
Na mesma linha vai a jornalista Shirley Legnani. “Tirando o noticiário, eu já não sei mais o que acontece na TV aberta. Aqui em casa, todo mundo usa os serviços de streaming. Aliás, sem os streamings e o vinho seria impossível passar por essa pandemia”, brincou Shirley.
A consultora de loja Maira Rachel Oliveira da Silva, 26 anos, conta que as plataformas de streaming mudaram completamente sua vida. “A gente se adaptou de uma forma que virou praticamente um vício. A mobilidade que esse tipo de serviço oferece é imbatível Eu assisto pelo celular, na rua ou quando estou no meu horário de almoço. Eu apoio meu celular em algum lugar e assisto mesmo”, revelou.
HÁ ESPAÇO?
Com a chegada da HBO Max, amanhã, a pergunta na cabeça de todo o mundo é: afinal, há espaço para todos esses serviços de streaming de vídeo? Só no último ano, desembarcaram no mercado plataformas como Disney+, Paramount+, Belas Artes à La Carte, Reserva Imovision e Supo Mungam Plus, que se juntaram à Netflix, Amazon Prime Video, Apple TV+, Starzplay, Mubi, Telecine e Globoplay. Em agosto, a Disney lança o Star+, com conteúdo mais adulto que do Disney+. Em setembro, chega o Discovery+.
A resposta provável para a pergunta é não. Mas o mercado brasileiro é atraente. Segundo pesquisa da KPMG, 86% de 1.012 respondedores afirmaram consumir streaming. Nos últimos três anos, o consumo de vídeo online cresceu 84%, uma tendência só acelerada pela pandemia. Numa pesquisa da Kantar Ibope Media, 58% dos respondedores disseram ter assistido a mais streaming pago no período, e 68% aumentaram sua dieta de serviço gratuito. Um relatório da Sherlock Communications revelou que 45% dos brasileiros assinaram pelo menos um serviço em 2020, com 16% aderindo a duas plataformas, 6%, a três, e 2%, a quatro.
E o brasileiro já costuma ver bastante vídeo: 80% no caso dos vídeos online gratuitos (contra 65% dos consumidores em outros países), 72% para vídeos em redes sociais (no mundo, 57%) e 62% em serviços de streaming pagos (50% no mundo). Por dia, cada usuário de VOD pago no País passou 1h49 vendo conteúdo. “O brasileiro tem uma relação muito forte com o vídeo, na comparação com outros países", disse Adriana Favaro, diretora de Desenvolvimento de Negócios da Kantar Ibope Media, ao Estadão. "A pandemia antecipou muitas tendências nas quais já estávamos de olho. O vídeo passou a ser mais protagonista nesse período.”
Não admira, portanto, que, diferentemente da aposta num lançamento global do Amazon Prime Video e da Apple TV+, e de um foco primeiro na Europa do Disney+, HBO Max e Paramount+ tenham escolhido a América Latina como seu segundo mercado depois dos Estados Unidos. “Muitos latinos ainda não estão aproveitando o streaming da maneira como esperamos. Então, acreditamos haver um espaço enorme para entrarmos e divertimos a América Latina”, disse Luis Durán, gerente-geral da HBO Max na região, em entrevista ao Estadão em maio.
No anúncio do Paramount+ no País, JC Acosta, presidente da Viacom CBS International Studios & Networks America, demonstrou grandes expectativas para o Brasil. "A Pluto TV (serviço de streaming gratuito da companhia) foi lançada com grande sucesso, então esperamos o mesmo com o Paramount+", disse.
Para Ricardo Queiroz, o País é um mercado interessante. “Não é só um teste. O Brasil é sempre vanguarda no consumo de dados, acesso a WhatsApp. Eles olham o mercado brasileiro com carinho porque somos digitais, gostamos de ver séries, de redes sociais.” O Brasil é sempre apontado como um dos três mercados principais da Netflix, e a Disney+ também conquistou rapidamente os espectadores locais. Plataformas locais como a Globoplay não demonstram preocupação.
“Observamos essa competição de uma maneira extremamente positiva e que trará benefícios ao consumidor", disse Tiago Lessa, head de Marketing, Aquisição e Engajamento de Produtos e Serviços Digitais Globo. "A tendência é que as plataformas globais convivam com forças locais, mas o fato de termos um DNA brasileiro colabora muito para que a gente idealize e produza, como nenhum outro player, conteúdos totalmente aderentes ao nosso público.”
André Sturm, do Belas Artes à La Carte, acredita que o streaming vai passar por algo parecido com o que houve com a TV por assinatura. “Aos poucos, o mercado se fechou em praticamente dois operadores e houve uma eliminação de muitos canai”, afirmou. (Gilberto Amendola e Mariane Morisawa/ Agência Estado)