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“Valores pelos quais lutamos têm de ser defendidos”, diz Pedro Almodóvar

Por toda sua vida, o cineasta espanhol Pedro Almodóvar, 72, superou as dificuldades recorrendo à imaginação. Nascido em 1946, o diretor de “Dor e Glória” e “Mulheres À Beira de um Ataque de Nervos” cresceu numa Espanha dominada pela ditadura de Francisco Franco, que tomou o poder em 1939 depois de a extrema direita ganhar a Guerra Civil Espanhola. Franco governou até sua morte em 1975. Após a guerra, o ditador e seus comparsas perseguiram democratas, anarquistas, socialistas e comunistas, além de judeus, ateus, homossexuais, feministas e líderes sindicais.

Almodóvar – um ateu que se descobriu gay assim que assistiu ao filme “O Clamor do Sexo”, película dirigida por Elia Kazan lançada em 1961 – estava entre aqueles que o franquismo via como indesejáveis. Mas, enquanto Franco governava, o jovem fissurado em cinema queria escrever um roteiro. Seus primeiros filmes foram produzidos na década de 70, com uma câmera Super 8 que lhe ajudava a fazer de sua imaginação uma espécie de instrumento para afrontar os princípios do franquismo, o que pôs em prática desde o começo da carreira, no curta “La Caída de Somoda”.

Mais experiente, já com “Tudo Sobre Minha Mãe”, “Volver” e “Abraços Perdidos” no currículo, todos celebrados como obra-prima, Almodóvar está no auge de sua força criativa. Em “Mães Paralelas”, longa-metragem que deve ser distribuído pela Netflix no começo deste ano, de acordo com a Variety, o diretor volta ao terreno melodramático. Penépole Cruz e Milana Smit fazem duas mães solteiras cujos filhos são trocados ao nascer. O segredo delas vai se desnudando ao espectador à medida que o filme começa a investigar um passado oculto: as valas comuns da Guerra Civil.

Segundo o historiador Paul Preston na obra “El Holocausto Español”, pelo menos 200 mil homens e mulheres foram assassinados sem um processo legal. As mortes foram cometidas tanto por nacionalistas quanto por republicanos, mas esse método baseado no terror foi colocado em prática num primeiro momento pelas forças ligadas ao franquismo, ao acreditarem que precisavam aterrorizar a classe trabalhadora urbana e camponesa para “purificar” o país e acabar com qualquer tipo de resistência.

Penépole Cruz, queridinha do cineasta, vive uma fotógrafa de moda chamada Janis que está na meia idade e teve uma aventura com um homem casado. Na maternidade, prestes a dar luz, não há sinal do pai. Ela divide o quarto com uma mulher mais nova. Ambas são solteiras. Uma está na meia idade, teve a gravidez planejada. A outra, com apenas 17 anos, engravidou por acidente e sente medo pelo que possa lhe acontecer. Nessas distintas experiências, as duas estabelecem um laço unido pela maternidade.

Pela primeira vez, o legado do franquismo será abordado pelo cineasta de maneira direta. “Mães Paralelas” não será tão autorreflexivo quanto o último filme de Almodóvar, “Dor e Glória”, porém é o mais introspectivo do diretor, em matéria de política. A seguir, leia a entrevista concedida por Pedro Almodóvar à Associated Press, republicada pelo Diário da Manhã a partir da Agência Estado.

Deve ter sido irônico fazer, no meio da pandemia, um filme no qual swabs e exames de laboratório são parte fundamental da trama, para comprovar a maternidade das meninas...

Quando estava escrevendo o filme, um ano antes, parecia ficção científica. Mas quando fizemos o filme, me pareceu muito familiar que Penélope Cruz usasse os cotonetes para fazer análise genética.

O que te interessou em fazer um filme sobre a exumação das valas comuns da Guerra Civil Espanhola?

Bom, acho que a ideia chegou até mim com maturidade em termos cinematográficos e também em termos pessoais. Faz muito tempo que quero fazer um filme sobre túmulos, coisa que, curiosamente, o cinema espanhol nunca fez. É algo verdadeiramente triste. Em 2013 ou 14, alguns pesquisadores da ONU vieram fiscalizar a situação em nosso país e ficaram muito surpresos com o fato de que a pessoa que os havia contatado para informá-los sobre a abertura das sepulturas já era a geração dos bisnetos das vítimas. Ou seja, a geração que tinha nascido na democracia. Os pesquisadores afirmam que a Espanha tem uma relação muito ruim com o seu passado.

Penélope Cruz, a la derecha, y Milena Smit en <em>Madres paralelas</em> (2021)
Milana Smit e Penépole Cruz interpretam mães solteiras em 'Mães Paralelas' - Foto: Iglesias Más/ Divulgação 

Mas seu ponto de entrada nessa história vem por meio de um melodrama semelhante aos de seus outros filmes, o que acaba ocultando as intenções mais políticas do longa...

Não queria só fazer um filme sobre valas comuns. Fiz tudo por meio de uma personagem, a Janis (Penépole Cruz), que tem um legado da avó, que a salvou e a criou porque era órfã. Essa mulher está tentando abrir as valas, porque não é só uma questão de identificar, é para mostrar que elas existiram. O que Franco fez a essas pessoas ao condená-las à vala comum foi tirar toda a sua humanidade, condená-las à inexistência. Me interessei em contar essa história por meio dessa mãe, porque ela procura a verdade da memória histórica espanhola, mas ao mesmo tempo vive o dilema moral de que na sua vida não se pauta pela mesma verdade.

Seus primeiros filmes na década de 1980 vieram depois de anos de censura na Espanha e contribuíram significativamente para um período pós-Franco de liberação nas artes. Você chegou a dizer que Franco teve de morrer para você viver. O filme “Mães Paralelas” foi motivado por uma nova ascensão do fascismo?

Jamais poderia ter feito um filme com Franco vivo. Achava que estávamos vacinados aqui na Espanha, por termos vivido aquela experiência horrível da guerra civil, que penso ser o pior exemplo de guerra. Eu via, cinco anos atrás, digamos, que a extrema direita estava crescendo na França, com o Donald Trump aparecendo nos Estados Unidos, o Jair Bolsonaro no Brasil etc., mas pensava que a extrema direita nunca chegaria à Espanha.

Às vezes penso que é o efeito Trump, que deu voz a muitos extremistas que se espalharam pelo mundo pensando: “Se esse homem diz essas coisas, não tenho motivo para não as externar”. Ele impulsionou todos os extremistas e ultradireitistas no Brasil, Itália, França e Espanha. Agora acontecem coisas que eram impossíveis de acontecer nos anos 80 ou 90. Agora vemos cada vez mais ataques homofóbicos, cada vez mais xenofobia. É um sentimento muito negativo ver que todos os valores pelos quais lutamos agora precisam ser defendidos mais uma vez, com toda a força. (Tradução de Renato Prelorentzou/ Agência Estado)

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