Há uma antiga querela entre melômanos. Põe em lados opostos os que gostam de cinebiografias e os que detestam a transposição biográfica à telona como experiência artística. Ãn, experiência artística?! Bom, em primeiro lugar, faça-me o favor! E entenda de uma vez por todas o seguinte: vida é arte, arte é vida e um dificilmente existe sem o outro. Na cabeça dos fãs, não raro, o diretor tal eximiu fulano da narrativa ou, pior, aquele lá encaretou sicrano quando suprimira passagens cruéis dessa existência desvairada.
Pois vos digo, eu tive calafrios assim que li sobre o filme que perfilará o furacão Ney Matogrosso. Ney - você sabe - ajudou a introduzir na música brasileira a estética glam, com maquiagens chamativas e roupas exuberantes - à moda David Bowie. À frente do Secos e Molhados, o cantor brasileiro revolucionou o comportamento nos anos 70. Apontou para nós os caminhos, por assim dizer. E enfrentou intransigências do pai milico e se opôs aos dogmas da Igreja Católica, sobreviveu à epidemia de Aids e à infestação do preconceito.
Quem irá interpretar esse camaleão na tela grande é o ator Jesuíta Barbosa, que se tornou amplamente conhecido do público brasileiro pela atuação em “Pantanal”, folhetim da TV Globo exibido no ano passado. Ainda há poucas informações sobre o início das filmagens, no entanto. Sob direção do cineasta Esmir Filho, a expectativa é que “Homem com H” comece a ser rodado daqui a menos de dois meses, em fevereiro de 2024. Na última semana, com direito até a foto publicada no Instagram, Jesuíta e Ney se encontraram para falar da cinebiografia.
“Somos 30, somos 40, somos 80 anos. Somos todas as idades. Somos um filme, uma jornada de liberdade e afeto. Somos ‘Homem com H’ à nossa maneira. O que nos transborda atravessa as telas. O que perde chão é cachoeira”, diz o diretor na legenda. “Homem com H” retratará a vida do cantor desde a infância à maturidade. Ney está imerso na produção, participando do desenvolvimento do projeto e discutindo os rumos do roteiro. A produção é da Paris Filmes e, até o momento, o longa-metragem ainda não tem previsão de estreia.
Um ídolo, uma história, uma transgressão: será que vão atenuar traços, digamos, rebeldes da personalidade construída por Ney? Sim, o cantor teve um caso tórrido de amor com Cazuza, por quem fora deslumbrantemente apaixonado nos anos 70, mas também impulsionou a carreira do Barão Vermelho ao regravar o hit “Pro Dia Nascer Feliz”, em 83. De fato, cinebiografar Ney de Souza Pereira é como reconstituir parte da cultura brasileira.
Em cartaz no streaming, os filmes “Cazuza - O Tempo Não Para” e “Somos Tão Jovens” andam em direção oposta ao espírito libertário. A homossexualidade assumida de Renato Russo, bem como a de Cazuza, se transforma numa bissexualidade controversa em ambos os casos. Tanto Sandra Werneck e Walter Carvalho, diretores de “O Tempo Não Para”, quanto Antonio Carlos de Fontoura, cineasta por trás de “Somos…”, criaram duas obras cujo grande propósito foi apresentar os artistas como bons moços. Decepcionante, no mínimo.
Um erro se juntou a outro. Guto Goffi, baterista e fundador do Barão, afirma ao “Papo com Clê” que sua banda foi retratada de forma infantilizada, como se ele, Frejat, Dé, Maurício Barros e Cazuza fossem “banda de playground”. Já no caso de Renato, de acordo com depoimentos à época em que o filme saiu, em 2013, a música “Ainda é Cedo” poderia ser sobre cocaína, diferente da maneira na qual é mostrada. Pela ótica de Antonio Carlos, a letra teria sido composta para a namorada Ana Cláudia, papel interpretado pela atriz Laila Zaid.
Mas relatos indicam que Cazuza e Renato Russo gostavam, preferencialmente, de transar com homens. Aos jornalistas Pedro Alexandre Sanches e Silvana Arantes, quando “O Tempo Não Para” saiu, em 2004, Frejat comentou que nunca tinha visto nada “heterossexual” no amigo. E Guto, em entrevista a este Diário da Manhã, declarou que aprendera a respeitar homossexualidade com o vocalista. Num show realizado em 82, a plateia ficara perplexa: o cantor - bêbado - enfiara o microfone inteiro na boca, como se estivesse praticando sexo oral.
Renato também tinha seus momentos de Jim Morrison, o mítico vocalista do The Doors, que simbolizara um boquete durante apresentação na cidade de Miami, em 1969. Morrison ganhou perturbadora caracterização de Val Kilmer em “The Doors”, de 91. Quem dirige é o cineasta Oliver Stone e nada fica de fora: drogas, maluquices e afins. Fã de Morrison, o legionário tretou com o público no Mané Garrincha, em 1988. Rolou impropérios, falou coisas cruéis e provocou os fãs. Pode-se dizer que o episódio é uma espécie de Altamont à brasileira, se é que é possível tal comparação com aquele show dos Stones, de 69.
Saindo do universo autêntico, verdadeiro e visceral desses de Cazuza e Renato Russo, encontram-se apostas em narrativas incapazes de irem além do trivial. É o caso, por exemplo, de “Elis”, drama-biográfico dirigido por Hugo Prata. A atriz Andréia Horta, sabemos, comove o fã mais intenso de Elis com uma entrega absoluta à personagem. Em termos de roteiro, no entanto, há um flerte descarado com o conservadorismo. Já “Tim Maia”, de Mauro Lima, maqueia certas passagens biográficas do soulman.
Seja como for, nem tudo é digno de reclamação nas cinebiografias nacionais. É possível reconhecer a homenagem à música do cineasta Lui Farias a Erasmo Carlos em “Minha Fama de Mau”. Assim como a devoção de Dandara Ferreira e Lô Politi ao tropicalismo e, principalmente, à figura emblemática de Gal Costa. Aguardemos “Homem com H”.
Onde assistir aos filmes citados na reportagem
O Tempo Não Para
Diretores: Sandra Werneck, Walter Carvalho
Amazon Prime
Somos Tão Jovens
Diretor: Antonio Carlos da Fontoura
Amazon Prime
Elis
Diretor: Hugo Prata
Netflix
Tim Maia
Diretor: Mauro Lima
Netflix
Minha Fama de Mal
Diretor: Lui Farias
Globoplay
The Doors - O Filme
Diretor: Oliver Stone
Apple TV+