Não aprendi a dizer adeus: o cantor Leandro, da dupla com Leonardo, comoveu o país há 23 anos ao morrer em decorrência de câncer no pulmão. Ele estava no auge da carreira. Cristiano Araújo, autor do hit “Caso Indefinido”, também sensibilizou os fãs ao sair de cena em 2015 num acidente na BR-153, entre as cidades de Morrinhos e Pontalina, no interior de Goiás. O artista voltava de um show realizado em Itumbiara.
Conhecido pelas músicas “Um Sonhador”, “Talismã”, “Rumo a Goiânia” e “Horizonte Azul”, Leandro começou cantando em bandas que faziam covers de Roberto Carlos e Beatles pela noite. No início dos anos 1990, ganhou projeção nacional com “Entre Tapas e Beijos”, canção que dera uma nova roupagem à música sertaneja, ao adicionar guitarra elétrica e, com isso, dar uma roupagem pop à musicalidade do sertão.
Em meados da década de 2010, ao surgir em Goiânia, Cristiano dominou as paradas de sucesso com canções como “Maus Bocados” e “Você Mudou”. Suas apresentações pelo Brasil arrastaram milhares de fãs, mas a reação popular provocada quando da partida dele não impediu o jornalista Zeca Camargo de compará-lo com Cazuza, Kurt Cobain, Mamonas Assassinas e a princesa Diana. “Ídolos de grande alcance”, definiu.
“A morte de Cristiano Araújo e a quase insana cobertura de sua despedida vestiu a carapuça de um contorno de linhas pretas no papel branco, só esperando a tinta da emoção das pessoas para ganhar tons e, quem sabe, significado”, disse Camargo, no comentário exibido no canal pago Globo News. E continuou: “nosso pop não precisa ser assim (...) temos tudo para adorarmos ídolos de verdade e para chorar de verdade.”
Como reação ao que consideravam uma insensibilidade, os fãs ficaram irritados e vilipendiaram o jornalista nas redes. O pai de Cristiano acionou a Justiça por danos morais após a repercussão que a crítica teve no Jornal das Dez. Condenado, Camargo entrou com recurso, no qual alegava liberdade de expressão e que as palavras, em vez de ofender, tinham o propósito de refletir sobre a comoção nacional. Em 2019, depois de idas e vindas no judiciário, entrou em acordo com a família do cantor.
À primeira vista, situações como essa podem ser interpretadas à luz de uma visão sudestina da cultura de massa brasileira. Assim que infestara as rádios nos anos 2000, havia quem acreditasse que o sertanejo universitário seria um movimento passageiro, porém pelo menos desde 2008 as elites intelectuais precisam aceitar os sucessos galopantes do estilo. Antes, com César Menotti e Fabiano, Victor e Léo e Michel Teló. Hoje, com Gusttavo Lima, Marília Mendonça e Simone e Simaria.
Mas há quem tente compreender a música sertaneja: foi o que fez o cineasta Nelson Pereira dos Santos, um dos expoentes do cinema novo, ao pegar uma câmera, cair na estrada e filmar “Estrada da Vida” (1980), cinebiografia da dupla Milionário e José Rico. No início dos anos 1990, durante o governo Fernando Collor, a crítica musical que derretia-se de amores por Caetano Veloso, Gilberto Gil e Chico Buarque e taxava o estilo fonograficamente emergente como “trilha sonora da era Collor”. Hoje se diz que o gênero é a trilha sonora da pandemia de coronavírus e do governo Bolsonaro.
FENÔMENO
A bem da verdade é que, muito antes de menosprezar o fenômeno sertanejo, é preciso compreendê-lo como uma tribo que não desaparece de uma geração para a outra, e sim se rearticula a partir de uma espécie pop-massiva, antropofágica eu arriscaria, pedindo licença ao historiador Gustavo Alonso, dono da expressão e autor da obra “obra “Cowboys do Asfalto: Música Sertaneja e Modernização Brasileira”, fruto de uma tese de doutorado defendida na UFF, em Niterói (RJ), no início da década de 2000.
“Em 2004, o produtor Almir Chediak lançou 2 volumes do livro “As 101 Melhores canções do século XX”. Tratava-se de mais um número da coleção Songbook, com partituras recolhidas pelo produtor. Entre as “melhores do século” estavam “Fullgás”, de Marina, “Como Uma Onda”, de Lulu Santos, “Meu Erro”, de Herbert Vianna, e “Brasil”, de Cazuza. Não havia sequer uma música sertaneja e as únicas canções de temática rural eram “Luar do Sertão” e “No Rancho Fundo”, analisa Alonso, na tese.
A história da música sertaneja é marcada por chamar de sua a inevitável modernidade e buscando uma brasilidade a partir de intercâmbios culturais e sonoros que são do funk ao forró, passando pela batida do arrocha. A noção atual de sertanejo, mais ou menos a que temos hoje, apareceu lá nos anos 1950, quando gêneros estrangeiros abarcaram em terras brasileiras e entraram de forma sistemática na música brasileira.
É dessa época as primeiras acusações de que o sertanejo estaria traindo o movimento e menosprezando suas origens rurais por se deixar seduzir por estética gringa e modismos. A cada geração, esse discurso se renova: Chitãozinho e Xororó foi um dos primeiros. Depois veio Duduca e Dalva, com “Massa Falida”, música politizada. Sem esquecer, é claro, de Chrystian e Ralf, tida como a dupla mais afinada do Brasil.
Muito além de ser a música dos relacionamentos efêmeros, o sertanejo universitário se torna a metáfora do Brasil à medida que a população ingressa nas universidades e começa a frequentar boates ao som uníssono do tcherere. Definitivamente, para azar os críticos que taxam o gênero como sendo de segunda linha, o sertanejo universitário não dá o menor sinal que vai sair de cena. Você terá de aturá-lo por mais algum tempo. (Marcus Vinícius Beck)