Talvez este cara, Keith Richards, não precisasse estar aqui, aos 80 anos, tocando – e tocando bem. Charlie Watts já não o acompanha atento enquanto saem os acordes de “I Got The Blue” com a delicadeza sinistra de um homem inebriado pela tristeza. Como se fosse um uivo agudo e delicado, a voz de Mick Jagger continua cobrindo a sombra atrás das guitarras. Duas guitarras que dialogam uma com a outra. E, depois, gemem. Então, a banda atinge o clímax, tal qual um orgasmo: “And I´ve got the blues/ And I´ve got the blues”.
Estou de joelhos, se quer saber. Poucas coisas na música são melhores que a sétima faixa de “Sticky Fingers”. Enquanto escrevo, ouço “I Got The Blues” pela terceira vez seguida no último volume. Do mesmo estilo de “Rolling Stone Blue”, canção que fecha o recém-lançado “Hackney Diamonds”, escuto um tributo ao blues de Chicago. Os dedos de Keith criam sons amplificados e o timbre da guitarra estilhaça as vidraças do lugar-comum. Ora, você acha que tamanha devoção à música afro não teria homenagem na discografia dos Stones?
Bom, corra ao Spotify e coloque pra tocar “Blue & Lonesome”, lançado em dezembro de 2016. A gravação ocorreu em três dias, como se a banda estivesse tocando num apertado pub londrino. Nas 12 faixas, o grupo retorna às raízes blueseiras e à devoção ao som eletrificado de Chicago, que sempre esteve presente na sonoridade stoniana. São interpretadas canções de Willie Dixon, Howlin´Wolf e Jimmy Reed. Difícil dar errado, pois é a banda mais importante do mundo tocando aquilo que ama: Jagger canta com intensidade, as guitarras conversam entre si (Ron Wood é excelente) e Watts exibe seu balanço na bateria.
Keith produziu junto com Mick parte considerável da música mais memorável do século passado. Entre 68 e 72, os Stones lançaram “Beggars Banquet”, “Let it Bleed”, “Sticky Fingers” e “Exile on Main St.”, quatro obras em cima das quais se construiu o repertório stoniano. Ok, há guitarristas melhores do que Keith Richards, solistas mais técnicos do que ele, porém a noção de ritmo e riff dele, o bom gosto nas composições, as progressões de acordes sustentados e espaços abertos tornam o som dos Rolling Stones inconfundível.
Devoto ao blues, Keith entendeu como funcionava a misteriosa nota tocada por BB King e, a partir de então, se debruçou na técnica de construir solos utilizando a corda dupla, estilo adotado pelo lendário T-Bone Walker. Segundo o guitarrista-pirata, isso serviu para fazer com que os Stones economizassem dinheiro naquele início de dureza financeira, em que “estávamos pagando para ser os Rolling Stones". “Eliminou a necessidade de seção de sopros”, afirma o músico, na autobiografia “Vida”, editada no Brasil pela Globo Livros.
Essas memórias podem lembrar “Junky”, clássico publicado por William Burroughs. Escrito em parceria com James Fox, a obra representa, hoje em dia, o maior registro que se tem sobre o guitarrista, embora o cineasta Morgan Neville tenha procurado filmar as pessoas e os sons que sempre alimentaram a alma inquieta de Keith. “Under the Influence”, em cartaz na Netflix, é um bom primeiro contato para entender esse universo artístico do qual o músico é um ilustre habitante.
Infância musical
Keith veio ao mundo em dezembro de 43. Ele cresceu numa Londres defenestrada pela Segunda Guerra Mundial. O pai, Bert, era funcionário da General Eletric. Desde pequeno, gostava de ouvir jazz, blues e os sons do pop americano. Chegou a cantar no coro da escola, mas perdeu o interesse ao notar mudanças em sua voz. Já se interessava pela música de Buddy Holly, Little Richard e do ídolo, Elvis Presley. Foi nessa época que tomou gosto pelos acompanhantes: o guitarrista de Elvis, Scotty Moore, e o arranjador e trompetista de Fats Domino, Dave Bartholomew, eram dois dos instrumentistas favoritos de Keith Richards.
O guitarrista-pirada segue a velha tradição trovadora, ao melhor estilo BB King, Muddy Waters ou Django Reinhardt, pois pendura o instrumento no pescoço e vai de cidade em cidade tocando seu ritmo pulsante e combinando notas de forma perigosa. Às vezes, é claro, lidou com a polícia, mas deu tudo certo. Se Keith achasse que a emoção tinha ido embora, talvez seria o primeiro a falar. Ele alterou a concepção sobre o que era rock, de que era preciso morrer jovem e evitar se encaretar, como dissera o The Who em “My Generation”.
Nos anos 60, Keith assimilou o estilo acelerado da guitarra tocada por Chuck Berry e o pulso blueseado consagrado pelo compositor Jimmy Reed. Ele também curtia Jimmy Rogers, que tocava com Muddy Waters, e os músicos que faziam a cozinha para Little Walter. “Nosso negócio era tocar blues de Chicago. Era para aí que levávamos tudo o que sabíamos. Era nosso ponto de partida, Chicago. Olhe o rio Mississippi. De onde ele sai? Para onde vai? Siga o rio, subindo sempre, e você vai dar em Chicago”, conta Keith, nas suas memórias.
Junto de Jagger - com quem chegara a protagonizar a “Terceira Guerra Mundial” nos anos 80 -, Keith formou uma das duplas mais interessantes do rock. Quando se encontraram na estação de Dartford, na manhã de 17 de outubro de 1961, o músico carregava um violão Höfner. Já o futuro vocalista trazia consigo discos de Chuck Berry e Muddy Waters. Graças ao empresário Andrew Loog Oldham, ainda na primeira metade dos anos 60, os Rolling Stones ingressaram à história como os antagonistas, os caras maus e, pior de tudo, aqueles com os quais era impensável deixar sua filha andar. Diferente dos Beatles, os bons meninos.
No fim dos anos 80, Keith se enfureceu com Jagger, que havia se unido a músicos jovens. O guitarrista decidiu ficar com o blues e, para sua banda, chamou o baterista Steve Jordan, o guitarrista Waddy Wachtel (Everly Brothers, Fleetwood Mac, Linda Ronstandt, Stevie Nicks), o baixista Charley Drayton, o tecladista Ivan Neville (colaborador dos Stones), a cantora Sarah Dash e o saxofonista Bobby Keys. Todos eles são músicos da primeira divisão.
Com Jordan, hoje homem responsável pela caixa, pelo bumbo e pelo chimbal dos Rolling Stones, trabalhou num documentário sobre Chuck Berry. É fabuloso ver o stone errando o vibrato na música “Carol” e Chuck lhe mostrando como é que se tocava aquilo. Os X-Pensive Winos, banda reunida por Keith, gravaram o segundo disco solo do guitarrista, “Main Offender”, lançado em 1992. Essa é, digamos, uma obra perigosíssima.
Pode-se apreciar o estilo do guitarrista no EP “Blues”, lançado pelo músico nas plataformas de streaming, durante a pandemia. Sua guitarra é afinada em ré-sol-ré-sol-si-ré. Blueseiros do Mississippi, Robert Johnson e Son House já utilizavam seus instrumentos dessa forma. “É possível ouvir outro acorde soando por trás, que você não está tocando, mas que existe. Isso desafia a lógica. O acorde está lá dizendo: ‘Vem’”, diz. Por isso, nota-se um som intrigante de “Big Town Playboy”, de Eddie Taylor, e “Key To The Highway”, de Charlie Segar.
A grande descoberta de Keith na carreira ocorreu no fim dos anos 60, quando Ry Cooder lhe mostrara a afinação em sol aberto. Essa é a maneira com que Keith passou a tocar seus riffs e as músicas pelas quais os Stones se tornaram conhecidos, como “Honky Tonk Women”, “Brown Sugar”, “Tumbling Dice”, “Happy”, “All Down The Line” e “Start me Up”. “Jumpin' Jack Flash”, idem. Era a procura do guitarrista por estudar o que os velhos bluesman tocavam, mas sempre levando o som para instrumentos elétricos e mantendo a simplicidade.
“Tudo o que você achava que sabia pulou pela janela. Ninguém tinha pensado em tocar acordes em menor numa afinação aberta em maior, porque você tem que fugir um pouco da coisa. Tem que repensar tudo, como em um piano virado de cabeça para baixo, com as notas pretas no lugar das brancas e as brancas no lugar das pretas. Além de mudar a afinação da guitarra, precisa mudar a afinação da cabeça e dos dedos”, ensina.
Hoje já octogenário - seu aniversário é nesta segunda, 18 -, Keith Richards é, por assim dizer, um sobrevivente. Em 1973, por exemplo, a revista “New Musical Express” o colocou no topo de sua tradicional lista das “estrelas do rock com maior probabilidade de morrer”. Nos anos 70, de fato, sua dieta era um tanto explosiva: bourbon, cocaína, maconha, heroína, LSD, mescalina. Mas o músico, contrariando todas as expectativas, se prepara para cair na estrada com os Rolling Stones em turnê pela América do Norte, no ano que vem. E o Brasil?