A poesia de Lawrence Ferlinghetti precisa ser carregada às ruas. Estar nos bolsos e nos corações das pessoas, povoar as mesas de bares e habitar prateleiras de livrarias, alimentar o espírito libertário e desafiar o status quo. Uma arte destinada a todos, não apenas a três ou quatro intelectuais, ensina o escritor na obra “Poesia Como Arte Insurgente”, título editado no Brasil pela 34. Afinal, “a poesia é Resistência suprema”. Ferlinghetti sabia o que falava.
Para o escritor Claudio Willer, tradutor de “Uivo”, escrito por Allen Ginsberg, o modelo de poesia a ser seguido nos Estados Unidos na década de 1950 tinha muito a ver com T.S Eliot, mas nada em comum com William Blake - o cara que inebriava-se nas estradas do excesso para chegar ao palácio da sabedoria - ou Walt Whitman - o poeta da democracia que flanava por Nova Iorque atrás de marinheiros. E William Carlos William, mesmo morando a vinte quilômetros de uma universidade, nunca havia sido convidado para falar em uma delas.
Só valia o comportado modelo canônico. Quer dizer, isso até Ferlinghetti assistir Ginsberg na livraria City Light Books declamando os pulsantes versos “eu vi os expoentes da minha geração destruídos pela loucura, morrendo de fome, histéricos, nus” e, bem, aí as mudaram de vez: “Uivo” foi editado. O poeta saiu de sua toca e abriu a janela. De lá, viu que os conservadores achavam, na realidade, os versos ginsberguianos uma incidência sem tamanho equivalente, com suas imagens “pornográficas” e seus versos libertários.
Cartilha
Como mandava as diretrizes do macarthismo, Lawrence Ferlinghetti foi preso. “A mentalidade fascista persiste através do mundo; ela fica voltando, por isso você tem que continuar batendo”, alertava o insurgente artista, que se mostrou libertário também na condição de poeta. Em “Poesia Como Arte Insurgente”, por exemplo, o autor criou uma súmula de suas reflexões e provocações sobre poesia e vida, arte e ativismo (era um anarquista de estética, ética e ação), ao longo de cinco textos escritos e reescritos por ele.
A receita de Ferlinghetti é tão simples quanto didática: “se você quer ser poeta, descubra novos modos de vida”. Caso não queira poetar, lembre-se que, de poeta e louco, eu e você temos um bocado e dê chance a esse livro de prescrições clamorosas, tal como sugere o escritor Leonardo Fróes, no texto de orelha. “Batem fundo na cabeça de qualquer um que mantenha um mínimo de bom senso para resistir às tolices que os modos supostamente lineares ‘de vida’ tentam impor à multiplicidade inexaurível das possibilidades humanas.”
Nascido em 1919, na cidade de Nova Iorque, Ferlinghetti ajudou a jazzificar a literatura. Ao lado de “On The Road” e “O Jogo da Amarelinha”, o escritor trouxe elementos da literatura surrealista. É o que pode ser percebido, por exemplo, no cultuado “Um Parque de Diversões na Cabeça”, livro editado no Brasil pela L&PM em formato de bolso. Assim como Jack Kerouac e Julio Cortázar, o autor celebra elementos banais do cotidiano, a vida simples e seu amor pela arte, num compêndio de memórias, impressões e fragmentos líricos.
O olhar do artista pincela o cenário da época, bem como a espiritualidade e a beleza intrínseca a tudo o que lhe cerca. Lembra Dante, evoca Goya, recorda Chagall. E também Yeats, Hemingway, Henry Miller. Desenha-se um parque de diversões na cabeça. E, de certo modo, é isso que o leitor vislumbra em “Poesia Como Arte Insurgente”. Um livro capaz de espantar a letargia da vida, tirar de cena o tédio da rotina. Um livro que reacende a alegria.
“Livro de combate, de carregar pela rua, no bolso e no coração”, afirma o tradutor e poeta Fabiano Calixto, no prefácio da obra. Para que serve a poesia nestes tempos apocalípticos? Anarquista de convicção e leitor assíduo de Fernando Pessoa, Ferlinghetti embalou revoltas libertárias e, em razão disso, se tornou autor obrigatório entre hippies, punk, ecologistas, queers. Nunca sem se distanciar da ideia de que “a poesia é a roupa íntima da alma”.
Caça ao tesouro
Na companhia dos beats Gary Snyder, Allen Ginsberg, Jack Kerouac, William Burroughs, Gregory Corso ou Diane di Palma, o autor nos mostrou que os ideias de caça ao tesouro, como nos tempos do faroeste, ou da luta desenfreada por dólares, destruíram valores existenciais autênticos, ainda que fossem os pilares do estilo de vida norte-americano e, por extensão, do próprio capitalismo. “Na escala majoritária, da qual todos eles se mantiveram à parte, o ter, em termos filosóficos, interpunha-se fatidicamente ao ser”, filosofa Fróes.
Ferlinghetti se despejou na poesia libertária, como quem se afoga numa taça de vinho ou numa dose de uísque. Mas não se considerava um beatnik. Ao contrário disso, aliás, pois - na visão ferlinghettiana - Kerouac, Ginsberg e Burroughs faziam suas loucuras enquanto ele, Lawrence Ferlinghetti, virava doutor na França. “Minhas influências foram muito mais francesas que americanas”, dizia. Gostava de ser classificado como “o último boêmio”, não de primeiro beat ou qualquer coisa do tipo. Para ele, a língua sobrevivia e contava história.
No Brasil, os poemas do autor começaram a ser editados na década de 1980 pela Brasiliense, alguns dos quais traduzidos por Paulo Leminski. “Escale a Estátua da Liberdade. Desafie o capitalismo disfarçado de democracia. Desafie os dogmas políticos, incluindo o populismo radical e o socialismo de manada. Escute o rumor das folhas e o murmúrio da chuva. Defenda os selvagens e os loucos. Veja a eternidade nos olhos dos animais”, orientava Ferlinghetti, que faleceu aos 101 anos. “Poesia Como Arte Insurgente” chega em boa hora.
Poesia como arte insurgente
Tradução e prefácio de Fabiano Calixto
104 páginas
Editora 34
R$ 51,00