Racionais apresentam domingo, 9, poderoso de críticas sociais
Marcus Vinícius Beck
Publicado em 8 de julho de 2023 às 01:16 | Atualizado há 2 anos
Os Racionais MC´s, que tocam neste domingo, 9, no Mix Rap Festival, se diferem de quase tudo o que foi produzido na música brasileira. Não pagaram madeira (como se diz nas quebradas) para tocar em rádios nos anos 1990. Se venderam 1 milhão de discos com “Sobrevivendo ao Inferno”, era pelo fato de a crônica da violência paulistana revelar, na verdade, um Brasil para o qual a embranquecida sociedade evitava olhar. A periferia lidou, desde cedo, com o mito da democracia racial – o abolicionismo mal planejado irracional expulsou o sonho da igualdade.
É um distúrbio sociológico. Que, por sua vez, virou marca indelével dos Racionais MC´s. Um testemunho do inferno, se preferir, para que sejamos mais precisos. Formado na década de 1980, o grupo possui som imbricado na cultura candomblecista, onde Mano Brown e Ice Blue – os B.B Boys, aliás – se iniciaram na música. Brown, por exemplo, chegou a fazer parte de um grupo que tocava samba. Já Rock e KL vinham da zona norte de São Paulo.
Para a psicanalista Maria Rita Kehl, o real se consagra como a matéria bruta do dia-a-dia da periferia. “Uma tarefa que, como todo trabalho de simbolização, depende de um trabalho de criação de linguagem que só pode ser coletivo. É como se os poetas do rap fossem as caixas de ressonância, para o mundo, de uma língua que se reinventa diariamente para enfrentar o real da morte e da miséria”, diz Maria Rita, no ensaio “As Fratrias Órfãs”.
Nos bailes
Aos poucos, os quatro se tornaram conhecidos no circuito de bailes de música negra e, então, KL Jay desperta atenção pela habilidade com que dançava break. Edi mandava bem no rap, até abrir show para artistas como Thaíde & DJ Hum o cara abrira. Eram frequentadores do Largo São Bento, um reduto da cultura hip-hop daquele tempo. Quem fundiu as duas duplas foi o produtor Milton Salles, em 1988, passando a empresariá-los.
O nome – Racional – inspira-se na “fase racional” pela qual o cantor e compositor Tim Maia enveredou no final dos anos 1970. Anos depois, em “Homem na Estrada”, de 1993, os rappers sampleiam “Ela Partiu”, lançada por Tim em 1977. Outro artista brasileiro importante ao grupo, como um fã mais atento percebe, é Jorge Ben Jor – Brown assinou, aliás, com o autor de “Samba Esquema Novo” a releitura da faixa “Ponta de Lança Africano”, gravada por Jorge Ben no lendário disco “África Brasil”, de 1976.
Do início ao fim, as músicas dos Racionais contém críticas sociais. O preconceito, a discriminação do negro e o cotidiano na periferia se sobrepunhõem verso a verso nas letras, como em “Racistas Otários e Pânico na Zona Sul”. Ter conhecido a vida na periferia levou, anos depois, Mano Brown a dizer numa entrevista que o rap havia lhe salvado. “E o casamento foi minha segunda salvação”, garantiu o cantor e compositor, que ocupa lugar dentre os letristas mais importantes da música brasileira, como Gil, Caetano ou Chico.
Entendam um ponto: os Racionais continuam sendo o que há de mais urgente na música brasileira. À medida que olhamos para os ancestrais brasileiros, muitos dos quais escravizados e alvo de racismo por uma sociedade que endossa o mito da democracia racial, o som do grupo paulistano se faz necessário. Talvez isso seja óbvio para quem é acostumado a ouvir Brown no podcast “Mano a Mano”, no qual já entrevistou intelectuais importantes, como Angela Davis – para quem “é preciso ser antirracista”. Mais Mano Brown impossível.
Só que os preconceitos são tantos: Brown foi definido como ex-presidiário (o que é mentira!) e acusaram-no de jamais sorrir (veja se isso é possível!). Acontece, é importante lembrar, que eles inovaram, não apenas no afiado discurso antirracista, porém também na estética. Hoje, por exemplo, são obrigatórios no concorrido vestibular da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), no interior de São Paulo, referência brasileira no quesito academia. “Quando li Malcolm X, senti que era negro mesmo”, diz o letrista, sempre que perguntado.
Holocausto urbano
Guiando-se pelo texto do militante antirracista norte-americano, os Racionais denunciaram que rolava um “Holocausto Urbano”, em 1990. Depois, nessa ordem, vieram “Escolha Seu Caminho”, dois anos após a estreia fonográfica, até “Raio X Brasil”, álbum cujos samples demonstravam referência ao funk e à soul music dos Estados Unidos. Era uma constelação de artistas: “Freddie’s Dead”, de Curtis Mayfield, em “Mano na Porta do Bar”; “Main Theme from Trouble Man”, de Marvin Gaye, na música “Fio da Navalha”.
Quem seria capaz de evitar Brown, KL Jay, Edi Rock e Ice Blue? A resposta que faz sentido é direta: ninguém. Ao menos, é verdade, os que gostavam de música e, além de tudo, sacavam a relevância do texto escrito por Brown. Por outro lado, se o som já havia se provado com qualidade, certos ouvidos marchavam na contramão. Os Racionais, acredite se quiser, entraram na mira da polícia como os “quatro negros mais perigosos do Brasil”.
Resultado: puxaram cana. Ainda assim, lançaram um disco impactante: “Sobrevivendo ao Inferno”, de 1997. As letras fazem crônicas da realidade social brasileira e empoderam a população periférica. Tamanha representatividade, por exemplo, foi analisada pelo escritor Arthur Dantas em livro de 176 páginas. Nos sebos, acha-se por R$ 44. E sua história é analisada ainda no podcast “Discoteca Básica”, comandado pelo jornalista Ricardo Alexandre.
Vale a audição atenta também de “Nada Como um Dia Após o Outro”, que chegou às lojas em 2002 – nessa época, discos iam parar nas prateleiras. Como “Sobrevivendo ao Inferno”, a obra foi elogiada pela crítica e, segundo a “Rolling Stone”, figura na octagésima oitava posição entre os melhores de todos os tempos da música brasileira. Direto, reto e poético, sem papas na língua, mostra-se nele a realidade das periferias de São Paulo, maior cidade da América Latina. É um Brasil que o próprio Brasil – sabe-se lá por que – evita enxergar.
Veja o line-up completo do festival
Racionais MC´s
Felipe Ret
L7noon
Poze do Rodo
Kayblack
Djonga
Xamã
Orochi
Ryan SP
Mc Hariel
Teto
Vulgo FK
Don Juan Veigh
Realbege
Tribo da Periferia
TZ da Coronel
Caveirinha
Ryu The Runner
Wam Baster
Jiraya Uai
DJ Low
Vinicius Cavalcante
Rap Mix Festival
Domingo, a partir das 12h
Estádio Serra Dourada, Jardim Goiás
Ingressos no ingresse.comnutix.com
A partir de R$ 40