Observa no corredor duas ou três fotografias da Seleção Brasileira nas conquistas de 94 e 2002, dois times responsáveis por libertarem o grito coletivo ao bater Itália, numa dramática disputa de pênaltis, e oito anos depois a Alemanha, na partida que simboliza a redenção de Ronaldo Fenômeno. De volta à mesa, passando pelo caixa, avista Doutor Sócrates e Zico, craque homenageado pelo novo baiano Moraes Moreira na música “Camisa Dez da Gávea”.
O repórter está no Buena Brasa, badalado bar goianiense situado no Setor Bueno (Av T-1, 472). E constata o óbvio: a bola irá rolar - talvez seja até bem tratada - no Catar em menos de uma semana. Mas nas ruas, ainda sob a tensão das últimas eleições, o clima festivo é tímido. Sem dar uma googlada, quem será o adversário brasileiro no primeiro jogo? (Isso mesmo, a Sérvia.) Concorda com as feras de Tite? Neymar repetirá Garrincha e Romário?
Mesmo com o torcedor se divorciando da Seleção, Tite aumentou a temperatura das discussões. A lista dos convocados, por sorte, fez o futebol voltar à pauta dos bares: dois volantes e nove atacantes?! E Gabigol, pelo amor, por que ficou fora? Mas o professor, é bom reconhecer, conseguiu a proeza de colocar ao mesmo lado lulistas e bolsonaristas na repulsa à convocação de Daniel Alves, lateral-direito que será reserva, multicampeão, de 39 anos.
A corneta começou a ser soprada ao ouvido de Tite em julho de 2022, por ninguém menos que a revista “Placar”: “vai pra cima!”, dizia o título da publicação, com uma foto de Antony, Raphinha, Rodrygo e Vinícius Jr ocupando a capa toda. Ao centro, lia-se a seguinte chamada, em caixa alta: “cabe um pedido a Tite: ponha para jogar os jovens Antony, Raphinha, Rodrygo e Vinicius Jr. Eles podem representar o fim da Neymardependência”.
Muito semelhante, aliás, à carta publicada por Jô Soares, na mesma revista, em 82, na qual pedia para Telê Santana colocar um jogador mais rápido. “Bota ponta, Telê”, suplicava. Quando saiu a “Placar” deste ano, porém, o verde e amarelo estava identificado com o bolsonarismo. E em dia de Brasil, ao se deparar com um sujeito vestido com a canarinho, como não saber ele se torce para o escrete montado por Tite e não se trata de um golpista?
Pós-Macaranazzo
Um dos símbolos identificados com o Brasil, a camisa não nasceu junto com a Seleção. Sua criação, segundo o Museu do Futebol, antecede a Copa de 50, ano em que a derrota para o Uruguai, em pleno Maracanã, adiou o sonho brasileiro de colocar as mãos na taça do mundo. O jornalista Mário Filho, inventor da imprensa esportiva brasileira, disse que, nas ruas, após a derrota por 2 a 1, viu o povo de cabeça baixa, lágrimas nos olhos, sem falar.
“Era como se voltasse de enterro de um pai muito amado”, observou Mário, irmão do cronista Nelson Rodrigues. Além de condenar o goleiro Barbosa à eterna culpa por levar gol do ponta-direita Ghiggia, responsável pela virada, o episódio serviu também para questionar se de fato a camisa branca e azul, usada pela Seleção em 50, carregava em si a ideia de nacionalidade brasileira, como acontecia com os vizinhos uruguaios e argentinos.
Em 1953, a Confederação Brasileira de Desportos (CBD), então gestora do futebol brasileiro, e o jornal carioca Correio da Manhã, considerado o mais relevante do País naquele período, anunciam um concurso para a escolha do novo uniforme da Seleção. Segundo o anúncio, publicado pelo veículo da família Bittencourt, a condição era que, no manto do escrete, estivessem as cores da bandeira do Brasil, hoje símbolo cooptado pela extrema-direita.
O regulamento pedia uniforme completo aos jogadores: camisa, calção e meias. O símbolo da entidade, em algum lugar do designer, era obrigatório, porém o que não poderia ficar fora, sob pena alguma, era a grafia “Brasil”. “A imprensa carioca em sua quase totalidade apoia a campanha do uniforme simbólico para a CBD”, anunciava o diário, fazendo ecoar sentimento partilhado sociedade da época, seja dentro ou fora do mundo futebolístico.
Cinco estrelas
No entanto, se havia o desejo de livrar-se do Maracanazo naquele ano de 1953, é bom lembrar que nem sempre foi assim. Durante a disputa do Sul-Americano de 1916, jogado na Argentina, a Seleção entrou em campo vestida com o verde e amarelo. O modelo, pouco tempo depois, foi criticado pela elite: ora, como pode usar as cores nacionais?
Até que, em 50, após a tragédia do Maracanazo, o desenhista gaúcho Aldyr Garcia Schlee deu jeito de enfiar o verde e amarelo na camisa. E o escrete, não por isso, e sim apesar disso, venceu o complexo de Vira-Latas em 58 (Pelé e Garrincha), encantou o mundo em 62 (Garrincha), venceu em 70 (Pelé, Tostão, Jairzinho e cia), quebrou o jejum em 94 (Romário e Bebeto) e conquistou em 2002 (volta por cima de Ronaldo, em sua jornada do herói).
“Fiquei escandalizado porque eles exigiam que as quatro cores da bandeira fossem utilizadas. Até três tudo bem”, afirmou Aldyr. Em 2013, após o vácuo deixado pelas manifestações de rua, a extrema-direita procura associar a camisa da CBF ao patriotismo que supostamente defendem. Parecido com o que aconteceu em países como Itália, Alemanha, Sérvia, Suíça, entre outros, de acordo com o cientista social Matheus Dias.
“O futebol deixa de ser o elemento representante da camisa da seleção para se transformar num símbolo desse espectro político”, afirma ao DM. Se nem a ex-presidente Dilma Rousseff, presa-política durante a Copa de 70, permitiu que os militares lhe roubassem o amor ao Brasil, por que há quem irá ser do contra, no Catar? Esse depoimento está no filme “Torre das Donzelas”, de Susanna Lira. Eis nossa paixão: a bola, o drible, o chute, o gol.