Morre papa Francisco, 1º pontífice latino-americano
DM Redação
Publicado em 21 de abril de 2025 às 07:05 | Atualizado há 4 horas
Reinaldo José Lopes – Folha Press
(FOLHAPRESS) – “Irmãos e irmãs, boa noite. Vocês sabem que o dever do conclave era dar um bispo a Roma, e parece que os meus irmãos cardeais foram buscá-lo no fim do mundo. Mas aqui estamos.”
Morto nesta segunda-feira (21), aos 88 anos, o argentino Jorge Mario Bergoglio já deixava claro em seu primeiro pronunciamento como papa Francisco, em 13 de março de 2013, que faria um pontificado incomum. Desde o coloquial “boa noite”, nada típico entre os pontífices anteriores, à ideia de que ele seria, no fundo, apenas o bispo de Roma, não um monarca clerical. E assim foi até um quadro de pneumonia bilateral do qual não conseguiu se recuperar totalmente encerrar seu período de 12 anos à frente da Igreja Católica.
O anúncio foi feito por meio de uma mensagem de vídeo do Vaticano, anunciada pelo cardeal Kevin Farrell. “Queridos irmãos e irmãs, é com profunda tristeza que devo anunciar a morte de nosso Santo Padre Francisco”, disse Farrell. “Às 7h35 desta manhã (2h35 de Brasília), o bispo de Roma, Francisco, retornou à casa do Pai.”
Os problemas respiratórios foram recorrentes em sua vida em 1957, quando era apenas um padre, uma inflamação na membrana que reveste o pulmão fez com que ele tivesse parte do órgão direito removida.
A impressão de vanguardismo seria confirmada diversas vezes ao longo dos anos, embora o primeiro papa do continente americano tenha ficado longe de ser um revolucionário ou radical. Francisco, de certo modo, deixou para trás o rigor doutrinal de seus antecessores imediatos, Bento 16 e João Paulo 2º, sem que isso implicasse alterações claras na tradição católica. Preferiu atuar de modo indireto e gradual, dando início a processos de transformação sem esperar que fosse possível determinar com exatidão o resultado deles.
Poucos esperavam que Bergoglio se tornasse um pontífice “fora do script”, embora a chance de que ele pudesse chegar um dia ao trono de Pedro já estivesse clara pelo menos desde 2005, quando foi o segundo mais votado do conclave que transformou o cardeal alemão Joseph Ratzinger em Bento 16 depois de algumas votações, conta-se que ele teria pedido a seus eleitores para transferirem seu apoio a Ratzinger.
Durante seus anos como sacerdote jesuíta, bispo e arcebispo de Buenos Aires, Bergoglio tinha adquirido uma reputação de figura relativamente apagada, conservadora e um tanto rígida. Antes de pronunciar, já como papa, a célebre frase “Quem sou eu para julgar?” sobre os católicos homossexuais, foi um oponente ferrenho da legalização dos casamentos entre pessoas do mesmo sexo na Argentina.
É difícil explicar as diferenças de posicionamento de Bergoglio antes e depois do conclave de 2013, mas duas coisas foram constantes em sua carreira sacerdotal: a preocupação com a desigualdade social e os efeitos de um clima político conturbado.
Nascido em Buenos Aires em 17 de dezembro de 1936, numa família de imigrantes do norte da Itália, Jorge era o filho mais velho do casal Mario e Regina Bergoglio. Na juventude, chegou a trabalhar como faxineiro e segurança de um bar e, mais tarde, como técnico em química. Tornou-se noviço da Companhia de Jesus em 1958, sendo ordenado padre 11 anos mais tarde.
Nos anos 1960 e 1970, a Igreja argentina, a exemplo da brasileira, enfrentava os desafios causados pela crescente politização de parte do clero. Inspirados pela Teologia da Libertação, corrente que propunha o engajamento dos cristãos na luta contra as desigualdades sociais e uma aliança com setores mais à esquerda, sacerdotes mais jovens acabavam se tornando alvos do aparato repressor de regimes militares, como o que tomou o poder na Argentina em 1976. Muitos jesuítas estavam na linha de frente dessa guinada à esquerda.
Bergoglio defendia a importância do apoio da Igreja às populações mais carentes, mas via com desconfiança a esquerda mais radical ligada à Teologia da Libertação. Durante os primeiros anos da ditadura militar, quando era o chefe dos jesuítas na Argentina, ajudou algumas pessoas perseguidas a deixar o país, mas também foi acusado de se omitir diante do rapto e da tortura de dois companheiros de ordem, Orlando Yorio e Franz Jalics.
A maioria dos estudiosos da ditadura argentina afirma que ele não foi um colaborador do regime, embora também não tenha se oposto frontalmente. Mais tarde, diria que a Igreja argentina deveria “colocar vestes de penitência pública por causa dos pecados cometidos durante os anos da ditadura”.
Mesmo quando João Paulo 2º lhe concedeu o título de cardeal, em 2001, Bergoglio continuou a viver num apartamento modesto, usando o transporte público e cozinhando a própria comida demonstrações de simplicidade pessoal que acabariam por se tornar uma de suas marcas registradas como papa.
Em reuniões das conferências de bispos da América Latina, como a que ocorreu em Aparecida em 2007, estreitou laços com cardeais como o brasileiro Cláudio Hummes (1934-2022), que acabaria inspirando sua escolha do nome de Francisco Hummes, membro da ordem franciscana, também era conhecido por sua preocupação com a pobreza, a exemplo do santo de Assis.
As linhas mestras de seu pontificado ficaram claras logo nos primeiros meses. Francisco declarou que queria evitar a preocupação excessiva com questões de moral sexual, como o aborto e a homossexualidade, adotando uma abordagem mais pastoral e acolhedora.
Para ele, era mais importante enfrentar o que chamava de “cultura do descarte”, gerada, segundo Francisco, pelas engrenagens desumanas da economia global, que acabavam impondo o descaso para com os mais pobres, os imigrantes, os jovens sem perspectiva de trabalho e os idosos. “Essa economia mata”, costumava dizer. Com amigos próximos entre chefes religiosos judeus e muçulmanos da Argentina, falava frequentemente da necessidade de criar uma “cultura do encontro” entre diferentes fés e etnias.
O papa dedicou especial atenção ao crescimento do catolicismo fora de seu eixo tradicional europeu, nomeando cardeais de 79 países diferentes, muitos dos quais na África e na Ásia. Desses, 26 nunca tinham contado com seus próprios cardeais antes. Entre os ineditismos estiveram os primeiros “príncipes da Igreja” de nações como Haiti, Cabo Verde, Panamá, Bangladesh, República Centro-Africana, Mali, Laos, Papua-Nova Guiné, Sudão do Sul e Irã.
Seu pontificado também foi marcado pela importância renovada do Sínodo dos Bispos. Estabelecido nos anos 1960 como uma espécie de órgão consultivo da Santa Sé, no qual bispos do mundo inteiro se reuniam em assembleias para discutir temas importantes para a Igreja Católica, o Sínodo, na prática, tinha se tornado mera formalidade, em geral apenas ecoando a agenda predeterminada pelo papa.
Francisco alterou essa lógica ao insistir na necessidade de discussões mais abertas nas reuniões sinodais que convocou, em especial durante os sínodos sobre a família (realizados em 2014 e 2015, com representantes de toda a hierarquia católica) e no Sínodo da Amazônia, de 2019, que contou apenas com bispos dos países abrangidos pela floresta.
Em 2023 foi a vez do chamado Sínodo sobre a Sinodalidade, cuja ambição era rediscutir os mecanismos de debate público e a colaboração entre clérigos e leigos dentro da Igreja, levando em conta inclusive a desigualdade de gênero entre homens e mulheres.
Nesse sínodo, concluído em 2024, pela primeira vez mulheres católicas tiveram direito a voto sobre as decisões do documento final, mais tarde chancelado por Francisco.
Propostas consideradas ousadas, como a possibilidade de que católicos divorciados voltassem a comungar ou de que homens casados pudessem atuar como sacerdotes em áreas isoladas da Amazônia, foram postas na mesa e sofreram oposição renhida por parte de membros conservadores do clero. Francisco também colocou em marcha uma série de debates acadêmicos sobre o papel das diaconisas na Igreja primitiva e sua possível incorporação no catolicismo atual o que equivaleria à presença delas num dos “degraus” do sacerdócio católico. Mesmo que isso não venha a se concretizar, o papa insistia na necessidade de incorporar as fiéis do sexo feminino nos processos decisórios da Igreja.
A comunhão para os divorciados que voltaram a se casar também acabaria se tornando uma possibilidade real com a publicação da exortação apostólica “Amoris Laetitia”, documento no qual Francisco diz que, em situações específicas, analisadas caso a caso, tais pessoas poderiam voltar a receber a Eucaristia.
O papa, porém, preferiu não transformar essa abertura numa regra geral. Dioceses mundo afora tiveram liberdade de implementar as diretrizes da “Amoris Laetitia” de diferentes maneiras. Cardeais e intelectuais católicos conservadores publicaram cartas abertas exigindo que Francisco esclarecesse as implicações do texto, mas ele se recusou a responder. A situação, assim como as propostas do Sínodo da Amazônia (que incluíam a possibilidade de elementos indígenas na liturgia católica), ajudou a engrossar o coro dos prelados tradicionalistas que enxergavam traços de heresia no pontífice.
Ao adotar São Francisco de Assis como modelo, Bergoglio iniciou uma aliança inédita entre a cúpula do catolicismo e o movimento de combate às mudanças climáticas. A encíclica “Laudato Si”, publicada por ele em maio de 2015 e dedicada a esse tema, é provavelmente o texto mais original do magistério dos pontífices no século 21.
Em parte, a encíclica resume com precisão o que a ciência descobriu sobre o impacto potencialmente catastrófico da ação humana sobre o clima da Terra. Mas a “Laudato Si” também é um apelo para que seja feita uma transformação dos modelos econômicos e filosóficos que produziram a crise climática, questionando os dogmas do crescimento sem limites e do suposto domínio irrestrito do ser humano sobre a Criação.
Ironicamente, os anos que se seguiram à publicação dessa encíclica foram marcados pela ascensão de uma direita radical no mundo, que enxergava o “esquerdismo” e a preocupação ambiental de Francisco como grandes ameaças. Tanto dentro quanto fora da Igreja, o fenômeno lança dúvidas sobre o que ficará de legado do “papa do fim do mundo”.