Colômbia: a violência como matéria-prima das artes
Diário da Manhã
Publicado em 2 de outubro de 2015 às 03:41 | Atualizado há 10 anosMADRID — “Joguei meu coração ao acaso e ganhei a violência.” “O país se derruba e nós dançamos a rumba.”“O perigo é que você queira ficar.”
Estas três frases nascidas em épocas distintas e recitadas por muitos colombianos refletem três estágios da violência centenária que o país vive desde a conquista espanhola, especialmente desde 9 de abril de 1948, quando foi morto o candidato presidencial Jorge Eliecer Gaitan. Agora, as coisas podem mudar com o acordo de paz alcançado em Havana pelo governo da Colômbia e a guerrilha das FARC.
Uma violência que serviu de tristíssima matéria-prima para a literatura, o cinema, as artes plásticas e o teatro, composta de morte, pavor, dor, medo e incerteza. Um gênero em si mesmo com nomes próprios muito importantes e obras essenciais dentro e fora da Colômbia. Na literatura, desde José Eustasio Rivera até Gabriel García Márquez, passando por autores contemporâneos como Fernando Vallejo, Héctor Abad, Evelio Rosero, Darío Jaramillo, Juan Gabriel Vásquez e Laura Restrepo. Nas artes plásticas, desde Alejandro Obregón até Doris Salcedo, passando por Dévora Arango ou Fernando Botero.
— Quem vai à Colômbia percebe quase instantaneamente que o perigo da morte se alterna com uma desenfreada fascinação pela vida. A pátria mãe amamenta seus filhos com os dois seios: um da violência e outro da alegria. Como se vivêssemos em carnaval, vida e morte alimentam uma festa movimentada pelo inquieto vigor dos trópicos — diz Laura Restrepo, que refletiu parte desta realidade em seus romances. — Um número surpreendente de bons literatos, poetas e jornalistas; baile e música; feroz senso de humor; espírito temerário; bibliotecas públicas de luxo; estudantes vivaces e curiosos; mães corajosas; médicos abnegados; sacerdotes comprometidos; alguns juízes incorruptíveis; rebelião borbulhante e uma obstinação quase poética em empreender processos de paz em meio à guerra, fazendo da própria boca do vulcão esta zona de segurança onde a sobrevivência se protege e se enriquece.
Na Colômbia da últimas décadas, diz o jurista Hernando Valencia Villa, o impacto da violência política nas letras e nas artes tem sido muito desigual:
— Entre a narrativa e o teatro existe uma tradição muito significativa de obras relacionadas com a violência bipartidarista (1948-1964) e o conflito armado interno (1964-2015). Nas artes e na música não se nota uma ressonância comparável — diz o especialista, que suspeita que a sociedade colombiana tenha se anestesiado. — Mas este distanciamento moral não foi apenas um mecanismo de adaptação e sobrevivência senão também uma forma de colaboracionismo e cumplicidade com a barbárie.
LITERATURA
A literatura é a que mais abordou o tema em todos os seus gêneros, especialmente a narrativa. Héctor Abad Faciolince, autor de “El olvido que seremos”, sobre o assassinato de seu pai, destaca os romances “Los Ejércitos”, de Evelio Rosero, e “El ruido de las cosas al caer”, de Juan Gabriel Vásquez.
— A primeira se ocupa da anomia da violência no campo e a segunda da violência política urbana e rural contaminada pelo narcotráfico. Tanto as artes plásticas como a literatura conseguem que um espectador ou um leitor se desacomode e se coloque no papel das vítimas. As artes nos educam com a empatia e a capacidade de sairmos de nós mesmos. E na evocação da própria dor ao ver ou ao ler a dor alheia.
Em certo momento, os romances sobre a violência tinham seu próprio gênero e um catálogo próprio, explica Darío Jaramillo, poeta, narrador e vítima da violência.
— Este tema rendeu excelentes materiais, como vários romances e reportagens de García Márquez, só para começar. E, além disso, “Manuel Pacho”, de Eduardo Caballero Calderón, “Cóndores no entierran todos los dias”, de Gustavo Álvarez Gardeazábal e, mais recentemente, “Siempre fue ahora o nunca”, de Rafael Baena sobre os últimos 30 anos.
Um dos escritores mais jovens é Juan Gabriel Vásquez. Ele diz que o romance colombiano sempre viveu obcecado com seus piores demônios.
— “Joguei meu coração ao acaso e ganhei a violência”, diz o narrador de La Vorágine, um livro escrito em tempos de paz. Duas décadas depois, a Colômbia estava se afundando na chamada Violência: uma guerra partidista que deixou trezentos mil mortos, um conflito armado que dura até hoje e romances suficientes para encher uma biblioteca. A imensa maioria era de obras esquecíveis, filhas da indignação e do afã da denúncia, valiosas como documentos, no entanto carentes de todo o interesse literário. Um dos críticos mais duros destes romances, o jovem García Márquez, as acusou de ser um mero inventário de mortos, e se colocou então na tarefa de contar a violência de outra forma: dalí sairam “El coronel no tiene quem le escriba” e “La mala hora”. A partir de então, a literatura colombiana entendeu que a entrada para a violência deve ser lateral e ambígua — de Fernando Vallejo a Laura Restrepo, de Evelio Rosero a Héctor Abad. Em outras palavras, não se deve olhar a Górgona nos olhos, porque se corre o risco de acabar transformado em pedra.
TEATRO
— O teatro sempre teve o tema da guerra muito presente como forma de arte e de protesto — assegura Carlos José Reyes, dramaturgo, roteirista de cinema e televisão e autor de “Teatro e violência em 200 anos de histórias da Colômbia”.
Medellín rendeu autores como Gilberto Martínez, um dos criadores do movimento teatral moderno. Entre os dramaturgos contemporâneos, Reyes cita Jaime Aníbal Niño, Henry Díaz, José Domingo Garzón, com obras como “El salado o Muchacho no salgas”, sobre assassinatos por encomenda. O especialista não se esquece de Victor Viviescas, que fez um teatro muito completo como, por exemplo, “La esquina”, que mostra pequenos bandos de homens armados em Medellin. Reyes diz que os anos 60 foram uma inflexão e depois veio o teatro de esquerda. Dos anos 90, destaca a obra “La trifulca”, sobre o asssassinato dos membros do partido União Patriotica (UP), o braço político da guerrilha.
CINEMA
Assim como o teatro, o cinema de início era mais crônico e descritivo, mas foi além do testemunho e da denúncia. Um dos primeiros filmes de destaque, segundo Carlos José Reyes, é Canaguaro, dirigido pelo chileno Dunav Kuzmanich. Nos anos 90, foi gravado “Cóndores no entierran todos los días”, de Francisco Norden, que conta a vida de um assassino muito violento, chamado de “El Cóndor”, enquanto os demais assassinos eram chamados de pássaros.
Victor Gaviria abre uma etapa com o cinema de temática derivada do narcotráfico e do narcoterrorismo. Filmes que narram a decomposição dos bairros do nordeste de Medellín, onde o chefe Pablo Escobar tinha muita influência. Nos últimos anos, houve outros filmes com certo senso de humor, como “Golpe de estadio”, de Sergio Cabrera. Além de adaptações literárias tão importantes como “La virgen de los sicarios”, de Fernando Vallejo, e “Rosario tijeras”, de Jorge Franco.
Nos últimos anos, a televisão tratou muito desta temática, mas centrada no mundo do tráfico. Um dos êxitos colombianos e internacionais foi a adaptação do romance “Sin tetas no hay paraíso”, de Gustavo Bolívar. Além de outras séries baseadas ou inspiradas em livros sobre Pablo Escobar e os cartéis de Medellín e Cali.
MÚSICA
Diferente dos narcocorridos mexicanos, na Colômbia não surgiu uma música muito clara ou popular que fale sobre a violência. No entanto, o teatro criou obras musicais especialmente para isso.
É uma violência que vem de muito tempo atrás. Logo se espalha no século XIX, depois da independência da Espanha em 1810, com suas 70 guerras civis que culminaram na chamada Guerra dos Mil Dias. No século XX, o assassinato de Gaitán, em 9 de abril de 1948, incendiou o país. Nascia a violência como uma medusa. Guerrilhas, paramilitares, narcotráfico, narcoterrorismo e assassinatos encorajados, por vezes, pela própria violência do estado ao longo dos anos, sobretudo com os chamados “falsos positivos” durante o governo de Álvaro Uribe, na primeira década deste século. Anos de orfandade de paz serviram como matéria prima para os criadores de uma espinha dorsal sobre que se constrói a história dos colombianos.
A ARTE COMO REFÚGIO
Héctor Abad Faciolince, autor de “El olvido que seremos”, sobre o assassinato de seu pai, diz que “seguindo o modelo de Goya ou de Picasso, também na Colômbia houve artistas que pintaram com raiva e horror a violência”. Ele cita Débora Arango, que, segundo ele, se nutriu do expressionismo alemão e do muralismo mexicano.
A pintura mais emblemática da arte colombiana do século XX, diz Darío Jaramillo, é “Violencia”, vencedora do salão dos artistas de 1962, de Alejandro Obregón. O quadro permaneceu por muito tempo na coleção de Hernando Santos, mas hoje pode ser vista em uma das paredes do museu do Banco de la República em Bogotá. Outros artistas são Luis Caballero, Fernando Botero e Doris Salcedo.
Para Salcedo, que denunciou esta violência e a falta de ação do governo, seu trabalho é um documento da história recente do país contada pelas suas vítimas, como ele disse em entrevista ao EL PAÍS em 2010.
— Desde as aquarelas de Débora Arango até as fúnebres instalações de Doris Salcedo, os artistas colombianos tentaram, com suas obras, oferecer a possibilidade de assumir, em termos de catarse libertadora, a crueldade de uma história carregada de morte e destruição. Os melhores conseguiram chegar lá e a eles devemos gratidão por termos feito da arte um refúgio certo contra a barbárie.