É preciso e urgente, um despertar ruidoso da sociedade e do Estado, com políticas públicas de inclusão, respeito a diversidade, o combate aos preconceitos e a intolerância. “Não basta não ser racista: sejamos antirracistas”, um olhar necessário, crítico, atento e empático, para uma população de indivíduos excluídos historicamente, imersos em injustiças e abandono. Marginalizados pela cor preta da pele, jogados na vala comum do abismo social, em uma sociedade hipócrita e racista, em que sua existência, tornou-se afronta aos racistas que ainda rezam e um eviterno digladiar, para não serem mortos pela truculência dos joelhos do Estado no pescoço.
Ainda carregam na alma as máculas do açoite covarde e do exílio, o ranço mau cheiroso das senzalas insalubres e as mãos calejadas de quem construiu boa parte da grandeza desta nação. Ingrata, que insiste em renega-los, “negar” uma das maiores vergonhas históricas da humanidade, a escravidão e que não há discriminação racial e social, contra os anônimos nas páginas policiais e nos obituários diários. Que tiveram suas narrativas ignoradas, silenciadas e negadas.
Ou seja, qual o perfil da maior população carcerária do Brasil, de analfabetos, de residentes em amontoados e pendurados em barracos nas periferias do país, segundo o IBGE? Coincidência? Não. Abandono, ausência histórica de políticas públicas de inclusão em uma sociedade, em parte, cúmplice, acomunada, covarde e racista. Não são as “soluções” eleitoreiras e midiáticas, que não emancipam e não incluem de fato, a Lei Áurea trouxe muito mais visibilidade para a Princesa Isabel que para os seus “contemplados”, alforriados. A preocupação do Estado brasileiro, da sociedade escravocrata, foi muito maior com os prejuízos econômicos os quais os oligarcas escravagistas teriam, por serem obrigados “abrirem mão” de suas mercadorias pretas, do que, com os famélicos alforriados, marginalizados, não indenizados, desempregados, analfabetos, desabrigados e desamparados de qualquer política pública. Legado da mentalidade latifundiária, patriarcal, alicerçada no coronelismo, no etnocentrismo, no machismo, misoginia e no racismo, como estrutura basilar em um país miscigenado.
É inegável o quanto somos um país miscigenado, o indígena americano, o branco europeu, o preto africano, uma diversidade cultural e religiosa riquíssima, fruto do sincretismo e do ecletismo cultural-religioso. Que nos legou não só um povo multiétnico, como também, o cristianismo e a catequese etnocida, seus interesses econômicos e suas convicções; a grandeza das religiões de matriz africanas e suas tradições milenares. De Xangô deus da justiça, do fogo, a Tupã dos Tupis-guaranis. O mesmo Atlântico que banha a Baía de todos os santos, são as mesmas águas que banham a África e seus orixás, evidenciando o quanto nossas diferenças, nos tornam iguais!
A educação, como vários outros setores da sociedade, possui um papel preponderante nesse processo ardoroso de transformação nesse âmbito nacional com ares provincianos. Do coronelismo, do “sabe com quem você está falando”, racista, machista, homofóbica, negacionista, exigindo um debate antropológico, filosófico permanente, numa busca incansável pelo respeito e a compreensão crítica do papel de cada cidadão, responsável por transformar essa realidade de miséria, preconceito e intolerância. Sempre serão nossas atitudes e o nosso caráter, determinantes para qualquer mudança e em qualquer circunstância. Em conformidade com Santo Agostinho: “Na essência somos iguais, nas diferenças nos respeitamos”.
É notório e o quanto nos enriquece, essa convivência com tamanha diversidade étnica, religiosa e cultural. Que nos coloca frente a frente, às questões desafiadoras, necessárias, pautadas pelo respeito e a tolerância. Princípios elementares, básicos, grandiosos e determinantes para a construção de uma sociedade mais justa, fraterna, igualitária e equânime. A luta das minorias, o grito dos excluídos deveria ser um esforço de todos! Um incansável enfrentamento contra a violência que exterminam na maioria das vezes, jovens e mulheres pretas diariamente – bem como, não pretas também. O feminicídio é alarmante no Brasil, reflexo do modelo de sociedade que nos tornamos, e que temos o dever moral, humano de mudar! Ainda ansiamos por uma justiça, por uma polícia, por uma sociedade, por um discurso religioso, que venham a julgar pelo caráter e não, pela conta bancária, pelo endereço ou pela cor da pele.
No horizonte, as conquistas começam timidamente a raiarem. As representações nos mais diversos espaços da sociedade, começam a ser ocupados por afrodescendentes, quilombolas, em posições de destaques e até então, preenchidos historicamente, por brancos. Nas últimas eleições, por exemplo, vimos essa representação de pretos e pretas, eleitos e eleitas, dando ainda mais vozes e representatividades, a quem por tanto tempo, foram silenciados. Conquistas emblemáticas e históricas, que revelam a pujança da resistência afro, sinônimo de conquista e respeito, como o de Erika Hilton em São Paulo, primeira trans negra eleita vereadora e Vilmar Kalunga, primeiro quilombola eleito prefeito no país, no município de Cavalcante-GO e que com certeza, não serão os últimos.
Portanto, querendo ou não, todos temos sangue preto! Alguns, nas mãos. A mesma que segurou o chicote e hoje ostenta o racismo e a intolerância. Que o Dia Nacional da Consciência Negra, seja para além das comemorações, que traga a reflexão e as possibilidades de mudanças reais, no combate ao preconceito e a intolerância. Que reverberem o som dos atabaques e da resistência pelo mundo, a vida dos pretos importa, porque “a casa-grande surta quando a senzala aprende a ler”! Axé!