Gabriel García Márquez, ao escrever Cem Anos de Solidão, afirmou que o livro era o seu Dom Quixote. Essa comparação entre duas das obras mais influentes da literatura mundial não é apenas uma observação literária, mas também um convite para refletirmos sobre as conexões entre a ficção e a condição humana, os temas universais que atravessam o tempo e as culturas. Ambos os romances possuem aspectos comuns e, ao mesmo tempo, características que os tornam únicos e insubstituíveis.
Escrito por Miguel de Cervantes no início do século XVII, Dom Quixote é considerado o primeiro romance moderno. Ele conta a história de um homem chamado Alonso Quixano, que, imerso em livros de cavalarias, decide se transformar em Dom Quixote, um cavaleiro andante. A obra brinca com a linha tênue entre a loucura e a razão, e suas aventuras com o fiel escudeiro Sancho Pança são uma reflexão profunda sobre o idealismo, o absurdo da vida e as contraditórias relações entre a realidade e a fantasia. O romance de Cervantes não é apenas uma crítica às novelas de cavalaria populares na época, mas também uma crítica social e uma reflexão sobre a natureza humana. Quixote, ao se afastar da realidade para seguir suas próprias ideias de honra e justiça, nos apresenta um mundo onde a imaginação transcende as limitações físicas e sociais. O romance mistura humor, tragédia e crítica social, criando um dos maiores personagens literários, que desafia tanto os outros personagens como o próprio leitor a refletir sobre o valor das ilusões e da realidade.
Por outro lado, Cem Anos de Solidão, escrito por Gabriel García Márquez em 1967, é uma das obras fundamentais do chamado "realismo mágico". Ambientado na fictícia cidade de Macondo, o romance narra a história da família Buendía ao longo de várias gerações. Nele, a magia e a realidade se entrelaçam de forma natural, onde fenômenos extraordinários são tratados com uma normalidade desarmante. O livro mistura o cotidiano com o surreal, revelando uma visão do mundo onde as fronteiras entre o real e o imaginário se tornam fluidas. A semelhança entre Cem Anos de Solidão e Dom Quixote pode ser vista na maneira como ambos os romances lidam com a busca por um propósito maior, embora de formas muito diferentes. Enquanto Quixote tenta transformar o mundo em um lugar mais nobre e idealizado através de sua própria visão distorcida da realidade, os personagens de Macondo estão presos a um ciclo de solidão e repetição, muitas vezes incapazes de se libertar de seus próprios destinos.
García Márquez também, como Cervantes, tece uma crítica à sociedade, mas sua abordagem se dá através de uma visão mais mágica e metafórica, onde o realismo histórico se mistura com a fantasia. Macondo, assim como a Espanha no tempo de Dom Quixote, é um reflexo da realidade social e política de sua época. A história da família Buendía representa, ao mesmo tempo, a história de toda uma nação marcada pela violência, pelo isolamento e pela repetição dos erros do passado.
A principal semelhança entre ambos os romances é a busca de liberdade e significado, mas enquanto Quixote o faz em um mundo que rejeita suas fantasias, os Buendía estão presos em uma cidade que parece, para eles, ser um lugar de inevitabilidade. Ambos os romances apresentam personagens complexos que, em sua busca por um ideal, não conseguem escapar de suas próprias ilusões ou destinos trágicos. No entanto, a forma como isso é tratado é muito diferente. Dom Quixote é uma obra de introspecção crítica e de humor sombrio, enquanto Cem Anos de Solidão é mais poética, rica em metáforas e mitologia. Ambos, contudo, são imortalizados por sua capacidade de transcender o tempo e as fronteiras culturais, tornando-se universais em suas reflexões sobre a condição humana.
Dizer qual desses dois romances é o "melhor" é uma questão profundamente subjetiva. Se considerarmos a inovação e o impacto literário, Dom Quixote pode ser considerado o mais fundamental, pois estabeleceu as bases do romance moderno e influenciou gerações de escritores. A complexidade do personagem de Quixote e sua luta constante contra a realidade fazem da obra uma profunda reflexão sobre a natureza da ilusão e da verdade. Por outro lado, Cem Anos de Solidão pode ser considerado o melhor romance para quem busca uma experiência literária rica em simbolismo, sensibilidade e uma exploração da história e da cultura latino-americana. Sua magia literária, combinada com uma crítica social atemporal, garante a García Márquez um lugar único no cânone literário mundial.
Em última análise, ambos os romances são inestimáveis e, em suas respectivas formas, são manifestações poderosas da capacidade da literatura de revelar os maiores mistérios da existência humana. Ambos têm suas peculiaridades e encantos, mas se me fosse permitido escolher um, diria que Cem Anos de Solidão é, para mim, uma das maiores obras literárias já escritas, pela forma como mistura o real e o mágico de maneira tão única e profunda.