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Dizem que grandes obras-primas da literatura resultam de dois sofrimentos inerentes ao ser humano: aquele que provém do interior e o do exterior. Creio ser oportuno revisitar alguns dos clássicos para constatarmos a veracidade dessa relação.
A longa espera de Firmina Daza e Florentino Ariza – no clássico “O Amor nos Tempos do Cólera” – representou um interminável período de quase 52 anos de um amor fermentado na adolescência, mas que, por objeção do pai de Firmina, não chegou a materializar-se.
Firmina Daza acabou casando-se com um bom partido, o médico Juvenal Urbino, enquanto Florentino Ariza seguiu seu rumo boêmio. Com a morte de Juvenal, esse amor pôde, enfim, materializar-se no final do romance. A partir de Florentino Ariza, o talento de Garcia Márquez produziu um dos fechamentos mais belos de um livro de amor. Com a morte de Juvenal, Florentino e Firmina poderiam enfim se amarem. Essa história tem seu contexto em um tempo de muito sofrimento, quando milhares de pessoas faleceram devido a uma epidemia de cólera. Nesse cenário, Florentino convida Firmina para uma viagem de navio. Eles vão para uma “lua de mel” flutuando por um rio repleto de cadáveres vítimas dessa grande epidemia. Nesse cenário navio fica a navegar de um extremo ao outro do rio. Agoniado com esse vaivém, o comandante indaga Florentino Ariza: “e até quando acredita, o senhor, podemos continuar este ir e vir do caralho?” Florentino Ariza tinha a resposta preparada havia cinquenta e um anos, sete meses e onze dias com as respectivas noites: “por toda vida”.
Quem bem soube lidar com o sofrimento em suas peças teatrais foi o inglês William Shakespeare. Em seu “Romeu e Julieta”, ele conta o amor entre dois adolescentes oriundos de duas famílias inimigas que optaram pelo suicídio. E, em “Otelo”, descreve a alma atormentada do general que se deixou levar pelas intrigas de um ressentido subordinado que fora preterido quanto a uma promoção que julgava ser sua. A fraqueza, manifesta por um ciúme doentio, levou Otelo a ceifar a vida da sua própria esposa Desdêmona, que jamais o havia traído.
A literatura sem sofrimento iria para um parque da Disneyland – tão bem representada pelos livros de autoajuda do tipo faça isso e seja feliz. A verdadeira literatura mostra-se viva no sofrimento de almas aflitas como a da sonhadora e solitária Emma Bovary, de Gustave Flaubert; do atormentado Dorian Grey, de Oscar Wilde; no hospital para tuberculosos como o descrito a “Montanha Mágica”, do escritor alemão Thomas Mann; ou no conflito entre o escritor peruano Mario Vargas Llosa e seu progenitor.
Tal como a psicanálise, a literatura desempenha um grande papel: o de levar o indivíduo a ser o agente de seu próprio conhecimento. Conhecer a si mesmo transforma o ser humano.
Quando enfrentamos um clássico, certamente, alguma coisa muda dentro de nós. Talvez, aí esteja uma das molas mestras da verdadeira literatura: o da autotransformação!
Engenheiro, bacharel em Administração de Empresas e mestre em Energia pela Unicamp
