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OPINIÃO

Itinerários da Paixão vilaboense: nos Passos da Irmandade

Rafael Ribeiro Rubro ,Especial para Opinião Pública

A Quarta-feira de Cinzas sinaliza a chegada da Quaresma. Tempo de recolhimento. De conversão. Oração. Jejum. Tempo de caridade. Início da caminhada de preparação para a Páscoa de Cristo. Sinaliza também que na seguinte sexta-feira tem missa na Igreja de São Francisco de Paula, assim como nas demais sextas-feiras da Quaresma da Cidade de Goiás – tocados seus meios-dias pelos sinos da São Francisco. São missas coloridas pelo roxo das murças e balandraus das Irmãs e Irmãos dos Passos, testemunhas e viventes da Paixão de Nosso Senhor Bom Jesus, que sofreu seu sublime sacrifício pela redenção de todos nós. Missas coloridas pelos motetes doridos dos Passos, motetes apaixonados, demarcam os passos da Paixão.

As missas da Irmandade do Senhor Bom Jesus dos Passos na Quaresma começam com a entrada dos celebrantes e de quatro Irmãos e quatro Irmãs em filas, eles dum lado e elas d’outro, portando as antigas lanternas de cobre com velas acesas, para fazer a guarda do altar, como que sentinelas austeras sob as vistas do Nosso Senhor dos Passos, em estado de contemplação, de oração, retiro.

E os motetes dos Passos, junto com os das Dores, fazem-se qual trilha sonora da Quaresma vilaboense, já há 160 anos, vez que criados em 1855, músicas do compositor Basílio Martins Braga Serradourada e letras, alusivas a trechos bíblicos sobre a Paixão de Cristo, selecionadas por seu filho, o cônego José Iria Xavier Serradourada. Durante todo o palmilhar até a Páscoa, vivem os motetes ecoando em nossos corações. Tocam nosso âmago. Adentram no fundo de nossa sensibilidade e conseguem a proeza de, mesmo em latim, comunicar seu teor plangente pelo prodigioso irmanar com a melodia, carregada de sentimento.

Os motetes dos Passos povoam o ventre todo da Igreja de São Francisco de Paula, que desde 1870 é sede da nossa Irmandade. Também alimentam o espírito dos grossos taipais que a sustentam, a alma do outeiro que a sublima. Comovem o chorar que emana da sineira pelo dobrar dos sinos decanos, e logram inclinar a intrepidez da palmeira emérita, sempre à espreita da urbe e à vigia da igreja. Transitam suas melodias os motetes trespassando pelas pinturas dos forros, pelos vários ornatos, pela singeleza da nave, pela força mística do altar-mor, pela imensurável carga de fé depositada no camarim do nosso padroeiro. Ecoam pelos adornos do retábulo, pelas chagas do nosso orago, pelos silêncios das sacristias, pelo secreto da Sala do Conselho da Irmandade. E estas músicas dos motetes instam em render nossos corações, embrenhar-se em nosso cerne, tocar-nos a estética mais profunda como o mais profundo sentir.

Já avançadas algumas semanas Quaresma adentro, chega-nos a Semana dos Passos. Semana deveras especial. Riquíssima de ritos e simbolismos. Semana cheia para os Irmãos da Irmandade do Senhor Bom Jesus dos Passos, em que se celebra a tradicional festa em louvor a seu padroeiro, representado pela imagem do Senhor dos Passos, que, como reza a lenda, veio da Bahia para Vila Boa em ombros de escravos, nos idos de 1750. Vemos nela um Cristo sofrido, sangrando, seu corpo todo marcado pelo látego inclemente, coroado de espinhos cruentos, extenuado, carregando sua cruz – enorme e pesada, minha gente! – dono duma expressão de partir o coração, de inspirar o pranto sentido daqueles que se compadecem de sua dor, de sua entrega plena e irrestrita à humanidade inteira. E a despeito de toda a sua dor, de todo o seu imensurável sofrer, do seu martírio pungente, a força invencível do Cristo salta de sua cruz, enorme.

Uma vez iniciada a Semana dos Passos, salientam-se o voltar-se para dentro de cada um e o voltar-se para Deus, e a aura de introspecção, de recolhimento – natural da Quaresma – se intensifica, ganhando ares do austero, sendo o sofrimento de Cristo com nós todos compartido. E as flores são retiradas dos altares e das vistas. As imagens todas, os crucifixos da igreja, o peitoril do coro: cobertos pelo roxo dos encerros. Tudo presta uma reverência à Paixão. Prepondera a severidade, o aspecto enlutado, o condoer-se com a dor de Jesus nos caminhos que o levaram à total entrega por todos e todas. E a despeito de tudo, aguardamos com esperança e ansiamos em oração a Páscoa do Senhor.

Perpassando toda a Semana dos Passos, perpassando os Irmãos e Irmãs dos Passos, esse espírito envolve as celebrações dessa semana tão especial.

Na quarta-feira de Passos há retiro espiritual com os Irmãos, na Igreja de São Francisco de Paula. Na quinta-feira, retiro e penitência comunitária estabelecida pelo sacerdote. Sexta-feira de Passos, como canta a tradição nas sextas da Quaresma de Goiás, é missa com motetes, e, em seguida, Sessão Solene de Posse e Compromisso dos novos Irmãos dos Passos. Antes dessa solenidade, contudo, há que se assinalar a cerimônia de Acolhida dos Filhos e Filhas do Senhor dos Passos, que foi introduzida em 2014 para iniciação de crianças e adolescentes de até 15 anos na Irmandade, com o fito de preservar e vicejar as tradições religioso-culturais vilaboenses. Tanto a solenidade do Compromisso como a Acolhida compreendem momentos místicos, de fé, de emoção, sem-par.

Na manhã do sábado de Passos, logo às 06h30min, a Irmandade fortalece seu espírito na Comunhão Geral dos Irmãos, em lindo e alegre momento de confraternização, partilha do pão e da vida entre Irmãos em Cristo, celebração jubilosa da festa do nosso padroeiro, Nosso Bom Jesus dos Passos. Padroeiro poderoso, luz das nossas sendas, guia supremo da nossa Irmandade dos Passos no curso dos séculos, a qual, fundada em 1745, completa seus 270 anos de cultura, tradição e fé neste 2015, seguindo pujante como baluarte da história religiosa vilaboense, guardiã pertinaz de nossas tradições – pela Graça do Nosso Senhor e pela força e união dos Irmãos e Irmãs.

Às 14h do sábado de Passos ocorre a cerimônia do Encerro, que, reservada apenas aos membros homens da Irmandade, feita a portas cerradas, desperta curiosidades, suscita dúvidas e mistérios. Antes de tudo, o grande sino da São Francisco de Paula sinaliza o início da cerimônia, com badaladas fortes e definidas. Depois os Irmãos se põem todos na Igreja, reclusos. Nesse momento ritual, os Irmãos preparam a imagem do Senhor dos Passos para sair à noite de sábado na Procissão do Depósito e às seguintes procissões do Encontro e da Transladação, domingo e segunda, nesta ordem. Preparam para esses préstitos a imagem do padroeiro, a qual sai apenas uma vez ao ano da sua Igreja de São Francisco de Paula, somente nessa ocasião. No Encerro, entre a série de atos e procederes, está descer do camarim Nosso Senhor, fixá-lo no andor, trocar sua túnica, devolver-lhe a cruz inteira, encerrar-lhe no baldaquim púrpura. Concluído o Encerro, oração de todos os Irmãos presentes, e, a seguir, badalar possante e amiudado do enorme sino – que, chegado nos 1925 à nossa sede, cumpre, pois, suas nove décadas no corrente.

Na noite do sábado de Passos, a imagem do padroeiro da Irmandade parte da São Francisco rumo à Igreja do Rosário, na Procissão do Depósito, que representa a ida de Jesus para o Jardim das Oliveiras, estando por isso encerrada a imagem, simbolizando o recolhimento de Cristo, voltado para si mesmo e para Deus, em profunda oração naquele momento de inumana agonia. Sai a imagem do nosso orago em seu andor prisco e forte, sustentado pelos ombros e braços de oito Irmãos dos Passos. Cruza o grande portal da Igreja de São Francisco, faz uma pausa no adro ao lado do cruzeiro para ouvir o motete “Pater”, e desce a escadaria dessa igreja ao som da bela, emocionante Marcha Rio-grandense, executada pela Banda de Música da Polícia Militar de Goiás.

Encerrada sob o baldaquim, percorre a imagem do Nosso Senhor algumas ruas do centro histórico da antiga capital goiana, sempre à sua frente duas grandes filas de fieis com velas em açucenas, como luzes flutuantes, caminheiras, pairando sobre as pedras de Vila Boa. Carregado por um Irmão dos Passos, o alto guião da Irmandade – grande bandeira com seu tecido violeta enrolado – puxa a Procissão do Depósito. E entre o andor e a cruz processional, andam as duas filas da Irmandade dos Passos, compostas por Irmãs e Irmãos, cintilando de roxo o cenário antigo da urbe. O Provedor da Irmandade caminha entre as filas, auxiliando na organização, coordenando a condução do préstito, empunhando seu bastão de prata. Ao fim, chega a imagem do Senhor dos Passos à Igreja de Nossa Senhora do Rosário, onde passa a noite de sábado para domingo.

E no domingo, à noite, já tirado seu baldaquim, já ornada com flores sua charola, e trocado o cireneu de alumínio pelo de prata, o padroeiro sai do Rosário para a Procissão do Encontro. Caminha por outras ruas de pedras, agora puxado o préstito pelo pendão – um grande estandarte de fazenda roxa, com as letras SPQR (Senatus Populus Quae Romanus). E o Senhor dos Passos faz parada em frente à Igreja de Nossa Senhora da Boa Morte, às margens da Praça do Coreto, onde encontra sua Mãe, nossa Mãe Maria, Nossa Senhora das Dores, imagem tocante na expressão que lhe conferiu Veiga Valle.

A cena do encontro de Maria com seu Filho, além de singularmente bela, comovente. De mexer com as entranhas do sentimento, com as essências da nossa humanidade. A dor da Mãe de Cristo é uma metáfora sublime da dor de todas as mães do mundo. Mães que sofrem com o sofrimento dos seus filhos, que se condoem da dor dos seus e dos outros filhos de outras mães. Mães que sentem na carne os flagelos vários que hoje vergalham seus filhos. Que também carregam, quais Cireneus, as cruzes dos frutos de seus ventres, cruzes hodiernas sob distintas feições e formas. E por isso são seres divinos, as mães. Cuja graça e dádiva transpõem os tempos e os atropelos.

Após a passagem do encontro, segue o longo préstito, parando as charolas em misericórdias nos passos, para canto dos motetos. Especial é a parada no passo do Chafariz, quando ao canto do motete “Filiae” o andor do Senhor dos Passos dá um giro completo, como Cristo, rumo ao Calvário, consolasse as filhas de Jerusalém. Assim, é feito o longo trajeto da Rua Félix de Bulhões sentido Rua Luiz do Couto, passando pelo Largo do Chafariz de Cauda, todo acompanhado com reza do terço e marchas da Banda de Música. Chegadas à Catedral de Sant’Ana, ponto final da Procissão do Encontro, às imagens de Nosso Senhor e de Nossa Senhora são dirigidos olhares de oração, de contemplação, admiração, alguns orvalhados, outros pedindo, outros agradecendo. E aí dormem as imagens de domingo para segunda – agora substituído o cireneu de prata pelo de alumínio, para o pouso do Senhor dos Passos.

A imagem de Nossa Senhora das Dores permanece na Catedral, para o tríduo em seu louvor, vindo a sair em procissão, no sentido inverso à do Encontro, na sexta-feira próxima, dentro da Semana das Dores. E já na segunda-feira, após a missa na Catedral, Nosso Senhor dos Passos retorna para sua casa, na Procissão da Transladação. Sua chegada na Igreja de São Francisco de Paula é também momento ímpar. Uma parada do andor em frente ao portão da escadaria, para que os fieis passem por baixo e peguem as pedrinhas abençoadas do Nosso Bom Jesus. Depois, sobe a escadaria, adentra a igreja,  pausa no altar-mor para que os fieis e Irmãos dos Passos retirem as flores para levar aos seus lares como símbolos de bênção, pausa também para orações e contatos de fé com o padroeiro, fitando Seu olhar penetrante. E já fechada a porta principal da igreja, remanescendo no interior apenas os Irmãos, homens, e de novo trocada sua túnica roxa, regressa ao camarim Nosso Senhor dos Passos, donde só sairá novamente no sábado de Passos do ano seguinte.

E agradecidos pela caminhada de fé cumprida em mais uma Semana dos Passos de Vila Boa, os Irmãos e Irmãs vivem a Semana das Dores e a Semana Santa, e seguem a estrada ao longo do ano, trabalhando, convivendo, vivendo suas batalhas diárias, aprendendo as lições da vida, alcançando suas conquistas. Sob as bênçãos do nosso padroeiro, alimentados, renovados, robustecidos na fé, perseverantes na Sua graça, palmilhamos nossos passos nos passos do Nosso Senhor.

(Rafael Ribeiro Bueno Fleury de Passos, nome literário Rafael Ribeiro Rubro, é advogado, escritor, poeta e cantor. Colaborador do jornal “O Vilaboense” e articulista do “Diário da Manhã”. Membro da OVAT (Organização Vilaboense de Artes e Tradições), da UBE - Seção Goiás (União Brasileira de Escritores), provedor da Irmandade do Senhor Bom Jesus dos Passos e presidente da Comissão Permanente de Licitação do Município de Goiás. ([email protected])

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