Há gente que mira a gente e só enxerga um cifrão refulgindo em nossa testa. Ora o cifrão é um sinal gráfico a “expressar unidades monetárias em vários países”, conforme diz o Aurélio. A expressar grandezas econômicas. Grande novidade! Como se qualquer criança, infinitamente mais inteligente que este humílimo escriba aqui, já não estivesse enfastiada de saber disto. Essa mania de enxergar um cifrão pulsando na testa da gente não é uma constatação científica não, mas uma impressão pessoal da cruel realidade que nos envolve. Ora já os seres humanos não pensam, nem sentem, nem sonham, nem cultivam as mais legítimas aspirações, nem os mais legítimos ideais, por terem se convertido num mero bolso a proporcionar lucro ao semelhante. Pois é para isto que a humanidade vai se encaminhando fatalmente até sumir: para dentro de um grande bolso, que vai engolindo a nós todos e de onde alguns capitalistas arrancam os seus níqueis. Níqueis a refulgirem aguçando a cobiça e a sede de ganhos.
Porque há uma intensa atmosfera mercantil pairando em alguns espíritos. Ai de quem não tem dinheiro não nesta selva monetária! E como se nem existisse, irmãos, porquanto a regra é ter posses. Ganhos. Uma vez que o “ter” vai miserável e paulatinamente engolindo o “ser”, na sua mais sublime expressão, caríssimos leitores do Diário, nesta sanha desumana e miseranda do auri sacra fames. Seja expresso, maldita fome de ouro, expressão pela qual Virgílio condena a ambição desmedida. Execrável fome de ouro! “A que não obrigas tu os corações dos mortais, ó maldita fome de ouro?” (Eneida, 3.56–57). Que na rigorosa língua de Shakespeare sai bem e suficientemente traduzida como “to what lengths will man's passion for gold not lead him”?
Tal passagem da Eneida conta como o abominável Polimestor, rei da Trácia, traiu, por cobiça ou cupidez, a sublime confiança do seu fiel amigo e parente, Príamo, rei de Tróia. Ah, quão desolador é trair um amigo por cobiça! Tudo porque Príamo, atevendo já a derrocada de Tróia, envia secretamente seu filho caçula, Polidoro, ao rei da Trácia, acompanhado de grande peso em ouro, a fim de que este o criasse e amparasse. Só que “o rei da Trácia, logo que o poder dos teucros foi quebrado e que a Fortuna” de Tróia “se afastou, seguiu o partido e as armas vitoriosas de Agamenão, e, com desprezo de todas as leis santas”, assassina Polidoro, jogando seu corpo ao mar, do alto de um penhasco, se apossando do ouro dele. Ah, sacripanta!
Passion for gold! Eis a maldita paixão de quem só enxerga o brilho dele no horizonte e não o sol refulgindo além. O sol de um mundo mais justo e fraterno.
Existe um universo inteiro de ideias afins no Dicionário Analógico do professor Ferreira, relacionadas com o tema da paixão cega pelo ouro: usura, onzena, mofina, cainheza, lucro, juro, aperto, gana, avidez, estreiteza, logro, pequenez, cupidez, vilania e muitas outras mais.
A contar com essas ideias, oh, Polimestor!, não tardará muito não e logo seremos segura e lamentavelmente apenas teres e haveres humanos, expressão material dessa humanidade ávida de ouro, em vez de verdadeiros e augustos seres humanos.
Não vai daqui nenhuma intenção de condenar radicalmente o Capitalismo não (eis que é ainda o velho sistema econômico que nos há de assegurar a plena e necessária liberdade para a justiça social), mas de torcê-lo pra um sentido mais fraterno. Sem nos esquecermos que a cobiça cega é prisão e não liberdade.
Nem vai daqui a intenção de manifestar a nossa indiferença pelo dinheiro, o que podia soar falso e demagógico.
Mas um capitalismo mais afim com a justiça social, sim, não seria nada mal. Um Capitalismo Cristão. Afinal, nada se realiza mesmo sem capital, nem mesmo a caridade humana. Mesmo porque há capitalistas verdadeiramente fraternos. Que o diga o empresário Antônio Ermírio de Morais, um capitalista realmente cristão.
O dinheiro, aqui simbolizado pelo ouro, há de servir pra nos dignificar e não condenar.
Houve um tempo materialista que um homem seguramente se revoltou e ousou denunciar aquele 'horror econômico', mas horror cego, nas relações sociais. Ficou ele mais conhecido pelo apelido chamativo il poverello d'Assisi ou o pobrezinho de Assis. Chamava-se ele simplesmente Francisco, Francisco de Assis.
(Pedro Nolasco de Araujo, mestre, pela PUC-Goiás em Gestão do Patrimônio Cultural, advogado, membro da Associação Goiana de Imprensa - AGI)