Na mitologia egípcia, Hórus seria filho de Osíris e Isis, um deus solar, ou o deus dos céus. Símbolo da luz, mas, principalmente, era a manifestação do poder, e um poder absoluto, sem limites. Era representado por um ser com cabeça de falcão e corpo humano.
Não era sem razão que os reis o invocavam e dele queriam ser protegidos, uma vez que assim teriam a luz ao longo de seus caminhos e a garantia de segurança de seus reinados.
À época dos faraós, todavia, esta veneração transcendeu os limites do razoável porque os faraós passaram a se enxergar como o próprio Hórus, vivo, na terra, senhores de todos os poderes, inclusive sobre a vida e a morte das pessoas e com a responsabilidade de manterem o equilíbrio cósmico.
A literatura a respeito do Egito no período dos faraós mostra que, de verdade, os faraós assim se consideravam: deuses na terra. E como o Egito era uma terra abençoada pelo Nilo, que a tornava muito fértil com a regularidade de suas enchentes e vazantes, sem se falar na riqueza extraordinária de seu solo e seu subsolo, a cultura de então tinha o Egito como ponto de equilíbrio do cosmos. Daí porque a prosperidade do Egito e a confirmação cada vez maior de seu poder e estabilidade governamental era fator preponderante no equilíbrio cósmico. Em razão disto a preocupação dos faraós com a estabilidade de seus governos, para a manutenção do equilíbrio cósmico.
Imagino, por isto, primeiro a incredulidade do faraó a quem José, filho de Jacó, revelou o significado dos sonhos: as sete vacas gordas surgidas à margem do Nilo sendo devoradas por sete vacas magras posteriormente. E as sete espigas de trigo, muito bem granadas, sendo devoradas pelas sete espigas malformadas e fracas.
Sete anos de prosperidade seguidos de sete anos de total desolação.
Aquilo nunca acontecera naquela terra abençoada!
Mas, em seguida, a dúvida: e se acontecer?
A responsabilidade do faraó no governo egípcio era a de manter o equilíbrio cósmico, o que seria impossível, com o Egito assolado por uma seca de sete anos.
Na dúvida, José foi nomeado Vice-rei do Egito e os sete anos de prosperidade foram seguidos por sete anos de seca total, estes absorvidos pelo Egito porque nos sete anos de fartura foram armazenados alimentos necessários para suportar todo o período de adversidade e ainda vender mantimentos para os povos vizinhos que não se haviam preparado para tão longa estiagem.
O faraó sentia esta responsabilidade.
O problema, todavia, estava no fato de, na maioria das vezes, este poder tão absoluto gerar no espírito de seu detentor a ideia cada vez mais veemente da sua própria divindade.
É a herança maldita do espírito, manifestada na carne: orgulho exacerbado, vaidade imensa, inclinação pelo poder, a dominação sobre os outros, sem qualquer limite.
Quem está assistindo “Os dez mandamentos”, novela baseada no texto bíblico de Êxodo, está começando a ficar com raiva da insolência do filho do faraó Ramsés e a vaidade sem limite deste.
Não se cansa de repetir que é o soberano, o Hórus vivo, na terra. O rei/deus, cuja vontade, por mais absurda que seja, tem que ser obedecida, doa em quem doer, totalmente deslembrado das consequências terríveis que caem sobre aqueles destinatários de seus desígnios, de suas atitudes ou decisões.
Nunca admite estar enfrentando força maior do que a dele, e sempre minimiza o adversário, porque o vê apenas na figura daquele que lhe faz o pedido, a advertência ou a súplica, nunca o imaginando um emissário de um poder maior, como se tudo fosse apenas o hoje...
E fico olhando a sociedade de hoje, tanto tempo depois, tão infestada de Hórus vivos, em todos os seus segmentos. Pessoas que, detentoras de algum poder ou de muito poder, não se preocupam em como usá-lo nem para que fim aplicá-lo, uma vez que os efeitos não os alcançarão, pensam.
Na medicina, na justiça, no governo, na política em geral, nas igrejas, nas relações com grupos ou nas relações individuais, pessoas que podem, com um pouco mais de serenidade, de bondade e de humanidade, causar benefícios inumeráveis a muita gente, mas que desperdiçam a oportunidade, preferindo apenas o mando. Acham-se um Hórus vivo na terra...
É sempre bom lembrar que aqui tudo é transitório e o amanhã chegará, implacavelmente, com suas consequências, até mesmo para os que se acham um Hórus vivo, na terra.
(Getúlio Targino Lima, advogado, professor emérito ( UFG ), jornalista, escritor, membro e atual presidente da Academia Goiana de Letras. Email: [email protected])