Sonhei que ganhei um carro vermelho, de luxo, mais que zerado, brilhava com tal condição que um só raio de sol tisnado pela carícia do dia, feria os olhos de quem olhasse pra ele; imaginei que profusão de brilho expandia de seu esplendor e beleza. Aquilo não podia ser apenas um carro (homem). Só podia ser uma carra, aquele rabo de peixe invejaria Marilyn Monroe de lábios retorcidos de tanto desdenho. O andar dele, melhor dela, é macio, silencioso, lento, emanando perfume. Para não ficar muito rústico, não convinha eu dirigi-lo pelas ruas da cidade. Marilyn é uma amiga muito chegada a quem pedi para dirigi-lo por mim. No que ela o viu, maravilhou-se! Encantou-se! Abriu os dois braços e os dedos em tipos de garras e joelhos cruzados um no outro exibindo um par de pernas e unhas manuais e dos pés, com esmaltes à cores fluorescentes, lábios fartamente avermelhados com o melhor batom da importadora Meimei.
– Oh! Que bela! E com voz doce. Vai chamar-se Charmeza! Alegrou-se a Marilyn. Não lhe cabe outro nome! Só eu irei dirigi-la. Pensei: e meus passeios com Maria? Pior: e minha liberdade? Ela ajeitou aquela mexa loira pendida na testa e correu a acarinhar o...
– A Charmeza! Exclamou ela instintivamente, como se invadisse meu pensamento a ponto de falar por mim.
– Inicialmente, vou levá-la ao salão da Nivinha, dar-lhe aquele capricho de brilho com flanela e creme...
– Não se esqueça de que ele bebe combustível... Água... Óleo...
– Nós vamos claro cuidar disso... Mas no Piantella... Tem música ao vivo!
– Num restaurante? Italiano? Espantei.
– Mas o Piantella abastece melhor que qualquer outro lugar.
– Não vai me dizer – falei a Marilyn — Que você irá levá-lo ao Posto do Luiz Antonele...
– Não. Respondeu gentilmente a loira que cuidava do meu carro. Que posto, que nada! Irá comigo ao posto de saúde... De lá... Ao salão de beleza que cuida da Miss Anápolis, a Thaynara Fernandes...
– Meu Deus! Quanta despesa!
– Você me negaria esses mimos? Se fosse para mim? Perguntou a moça.
– Depende... – Exclamei, meio cismado.
– Pois você sabe que sua Marilyn, aqui, jamais perde uma parada...
Remexendo luxuriosamente a carroceria (“as ancas”) entrou no meu carrão, balançou as chaves e disse:
– Vou dar um chega ali na concessionária da Mercedes pra ver se a Charmeza está toda zerada e linda. E convidou-me: – Entre aí, talvez tenha que pagar algo.
Abriu a porta traseira e eu entrei.
Com medo de perder meu lindo carrão, num incidente de percurso, fiquei preocupado: será que a loira dirige uma especialidade dessas?
E a Mercedes deslizou pelas principais avenidas e ruas da terra de Zeca Batista. Não sabia que para ir a simples locais de concessionárias a gente tivesse que andar tanto pela cidade. O que têm, por exemplo, na Praça Dom Emanuel, na Praça Bom Jesus, no Parque Ipiranga, no Daia, na Base Aérea a ver com o meu carrão? Só de combustível já devo estar devendo outro carro desses ao Luiz Antonele.
Finalmente chegamos à concessionária da Mercedes.
Vieram aqueles “mecânicos” – lá são “personal trem” – de fraques, luvas e aquele sorriso branco de lua minguante.
– Pois não, senhorita? Falou um dos atendentes.
– Uma vistoria na Charmeza.
– Pois não, arta. E ofereceu-lhe uma taça de champanhe. A mim, sequer me viu.
Uma equipe de “personal car”, toda esnobe, foi ver o meu carro que já me punha arrependido de tê-lo ganho...
Equipados com óculos especiais, com lanterninhas a laser nos aros, aparelhos de medir ruídos, sons, lentes a verificar a lataria, mostruário de conferir cores.
– Achei! Gritou um personal técnico! Há um arranhado no rubro-luxo-acetinado, logo aqui, madame!
– Aonde? Indagou a amiga chegada, olhando, atentamente, o local indicado:
– Bem no cantinho da cauda de peixe da Charmeza.
– Ah, deixe isso pra lá, Marilyn! Não estou vendo sinal nenhum de nada, aqui!
– Vocês homens não veem nada! Só sabem reclamar.
Ela apertou com o dedo a cauda do carro. Uma lasquinha de tinta do tamanho de uma pontinha de lápis (algum excesso de cera) surgiu diante dos seus assustados e arregalados olhos azuis.
– Ooooooh! Arrume! O lacaio de fraque ou smoking chegou ao local “afetado” do carro com uma canequinha roxa e um pincelzinho e cuidadosamente aplicou ali a tal poção com sutileza, educação e muita frescura.
– Pronto, madame. Tudo ok.
– Por favor, “Pierre”, bota na conta dele. E apontou para alguém. Olhei rápido para conhecer o infeliz. Seu dedo adornado de anel e verniz de cor indicava o azarado: claro, era eu!
– Vamos? Convidou-me a entrar na máquina ultrafina.
Saindo da concessionária, ela dirigindo, eu atrás, já rodando, imponentemente, a Av. Brasil, a motorista viu (acho que pela vez primeira) o emblema do carro: aquele círculo de metal com uma estrela de três pontas no interior, e me perguntou:
– Bemmm, o que é essa rodinha no bico do motor?
– É um alvo! Respondi, zangado, chateado com tudo. Preferia nem ter sonhado...
– Alvo? Pra que serve?
O dia estava movimentado. Lideres políticos nacionais passavam por Anápolis e havia muita gente em risco na cidade, por estar ela no volante. Mesmo assim, preocupado, achei de explicar à ela o que seria o tal emblema da Mercedes (para ficar livre):
– Aquilo é um alvo. Por exemplo: você tá vendo aquele senhor atravessando a avenida?
– Claro! Não sou analfabeta!
– Então... Você põe o cidadão bem no centro do alvo, acelere com força, atropela sem erro, o distinto...
E voltei minha atenção para as demais autoridades visitantes. Enquanto isso a minha réplica de Marilyn Monroe esbugalhou com o cara no bico do meu ex-carro, hoje no ferro velho... À venda.
O difícil está sendo pagar o hospital que não é para qualquer bolso. É o hospital Beneficência Portuguesa, em São Paulo... E não posso atrasar com a prestação... Pois a vítima quer porque quer ser candidato a presidente da República... Pela segunda... Ou terceira vez.
A bonitona? Virou assessora da...
Nunca mais sonho com carro.
Sonho de pobre dá nisso: o pão só cai com a manteiga pra baixo...
(Iron Junqueira, escritor)