Mino Carta,Especial para Opinião Pública
Inúmeros brasileiros vivem uma ficção, a supor que se trate da própria realidade. Eles acreditam que, derrubado o governo de Dilma Rousseff, o destino voltará a sorrir. E que a corrupção é o mal maior, de exclusiva marca petista. E que a Operação Lava Jato é a versão melhorada da Mãos Limpas italiana e que o juiz Moro é um varão de Plutarco. E que foram finalmente desnudados os pecados de Lula, entre outros, o de ter feito lobby no exterior a favor de empresas brasileiras, tanto na qualidade de presidente da República quanto como simples cidadão. E por aí afora. Suponho, aliás, que o rei da Suécia deva perder a coroa por ter feito lobby dos caças enfim adquiridos pelo Brasil.
E, a propósito de Lula, acreditam na sua tentativa de conferenciar com Fernando Henrique em busca de um entendimento suprapartidário, frustrada prontamente pela negativa do príncipe dos sociólogos. O episódio é menor, mas exemplar. Abandonada a ficção, caiamos na real. Dois amigos procuram Lula no começo de julho, são amigos também de FHC, e trazem a proposta de uma conversa sobre os problemas contingentes. O procurado sabe que o proponente gosta de aparecer e, portanto, de passar a prestativos jornalistas informações que haveriam de permanecer secretas. Daí a contraproposta: tudo bem, se o encontro se der na casa de um dos amigos comuns, com a garantia de testemunhas confiáveis. FHC manda responder que concorda, mas será preciso esperar pelo retorno dele de uma viagem ao exterior. Dias atrás, Lula é informado pela mídia que o viajante voltou e espalha a versão ficcional: ele não quis a conversa proposta pelo petista.
Entregue à veia romanesca, a mídia borda a respeito dias a fio. Recordo ter assistido a um encontro entre Lula e Fernando Henrique em um bar na periferia de São Bernardo, naquele começo do outono de 1980 marcado pela greve dos metalúrgicos de São Bernardo e Diadema, encerrada com a prisão do presidente do sindicato, enquadrado na Lei de Segurança Nacional da ditadura. Antes da chegada do então suplente de senador, eu quis me retirar. Lula disse “fica, fica, vai valer a pena”. Não fosse clara a diferença entre as duas figuras, qualquer dúvida cairia. Diferença na fé e na coerência. FHC recomendava cautela. Contemporização. Pensei que ele já enxergasse no interlocutor do bar do arrabalde um adversário carismático, perigosamente atilado. Talvez, um inimigo, de sorte a sugerir a conveniência de conter-lhe os ímpetos.
Trinta e cinco anos após, FHC ainda está na ribalta, empenhado em desempenhar o papel de oráculo do PSDB, de mentor-mor, a orientar o movimento desencadeado contra o governo e o PT, sem conseguir encobrir o alvo mais graúdo, ou seja, o próprio metalúrgico com quem conversou à vista de ovos duros, sardinhas fritas e garrafas de cachaça. E a realidade de hoje diz que a oposição engatilha mais uma cartada no jogo do impeachment, com o apoio maciço da mídia, conforme um projeto de iniludível natureza golpista.
Desde antes da posse, os vencidos tentam solapar o governo e brandem a ameaça do impedimento. O “petrolão” lhes ofereceu munição farta, com a contribuição das posições cada vez mais dúbias do PMDB, da desorganização e inoperância do PT e do descumprimento das promessas feitas por Dilma Rousseff aos seus eleitores. Não faltaram tentativas de envolver a presidenta no escândalo da Petrobras. Todas malograram. Sobram para o cardápio do momento as expectativas em relação às decisões de TCU e TSE sobre contas e pedaladas.
CartaCapital lembra que a história recente e nem tanto registra a eleição de outros candidatos em circunstâncias análogas, se não idênticas, coroadas pela posse sem riscos, percalços, objeções. CartaCapital entende que, acima de tudo, deve vingar obrigatoriamente o respeito à Constituição, sem hipocrisias e golpes baixos. Nem por isso, não há como disfarçar o açodamento oposicionista, mais ainda, a irresponsabilidade. A despeito dos ficcionistas midiáticos, a saída não está em uma mudança da guarda no Planalto. E a se considerarem as consequências da queda deste governo, é fácil compreender que o Brasil com Dilma legalmente reeleita é a solução indispensável, a bem da nossa incipiente democracia.
Estamos a nos aproximar de jornadas de muita tensão, ao que tudo indica. Sabemos, contudo, que mesmo superado o terremoto, a oposição e sua mídia não desistirão do combate, pois a Lava Jato prossegue sem esmorecimentos, sob o olhar impassível do STF, indiferente diante de um acúmulo insuportável de irregularidades, enquanto a crise econômica fermenta, com a alta de desemprego e inflação e crescimento abaixo de zero.
A partir do pós-reeleição, CartaCapital insiste na necessidade da retomada imediata do crescimento, quem sabe a começar pela conclusão das obras inacabadas do PAC, cujo atraso oscila entre 20% e 30%. Falávamos no exemplo de Roosevelt depois do craque da Bolsa de Nova York. Com o aproveitamento de recursos públicos, Dilma poderia lançar o seu new deal, modesto, mas eficaz. Óbvia a incompatibilidade entre essa ideia e o ministro da Fazenda, Joaquim Levy, empenhado em elevar juros e aplicar a cartilha de Chicago.
Seria preciso inverter a rota, ao perceber finalmente o óbvio: antes que econômica, a crise é política. E agora me pego a descambar para o onírico. Em lugar da ficção da mídia, o sonho de um jornalista ancião. Começa com o pesadelo chamado impeachment. Resultado: assume Michel Temer, o qual, entre parênteses, mantém desde a posse um comportamento correto. O PMDB alia-se ao PSDB e Levy continua na Fazenda. De cambulhada, privatiza-se a Petrobras e entrega-se o pré-sal a um consórcio das sete irmãs do petróleo mundial. Dissolvência. Saio do pesadelo, sonho, simplesmente. Hora das eleições de 2018, Lula vence. É um passeio.
(Mino Carta, diretor de redação. Fundou as revistas Quatro Rodas, Veja e CartaCapital e criou o Jornal da Tarde - Texto originalmente publicado na CartaCapital)