Segundo Carlyle (1795-1881), em Os Heróis e o Culto dos Heróis, “tudo o que a humanidade tem sido, feito, pensado ou lucrado encontra-se como que magicamente preservado nas páginas dos livros”. Deve ser por isso que o notável pesquisador, jornalista e folclorista, Edison Carneiro, nascido em Salvador, Bahia e falecido no Rio de Janeiro (1912-1972), conseguiu preservar a presença da luta e da cultura do povo negro no Brasil, tornando-se célebre com os livros: Antologia Do Negro Brasileiro, Candomblés da Bahia, Religiões Negras, A Sabedoria Popular do Brasil, Dinâmica do Folclore, Samba de Umbigada e Ladinos e Crioulos, refletindo e estudando a formação de nosso País. Divide a Antologia em oito partes: Pioneiros, Marcha da abolição, Sob a escravidão, As reações do negro, Folclore, Religiões, Figuras de negros e Sob a República, o que já revela a abrangência e seriedade como aborda o tema tão importante a todos que pensaram e interpretaram a vida nacional.
Como organizador do livro, deixando valiosas notas explicativas no final, Edison Carneiro começa destacando a importância do negro no Brasil, sua luta através de muitas gerações, tentando destruir o preconceito de raça e de cor, herança da escravidão, para erguer sobre as suas raízes a fraternidade democrática de raças e povos do Brasil, buscando um lugar ao sol – assim enfrentando os capitães-do-mato já nos meados do século XVII; com suas zaguias, pedras, cacetes e arcabuzes, se defendendo das forças inimigas numericamente superiores, principalmente nas revoltas quilombolas como a de Palmares, em Alagoas; Cumbe, na Paraíba; Carlota, no Mato Grosso; São Tomé, no Maranhão; os aquilombados no Rio das Mortes a serem esmagados com uma crueldade inominável em 1751, trazendo de volta os capitães-do-mato 3.900 pares de orelhas (o assunto gera dúvidas); a revolta religiosa dos malês muçulmanos na Bahia, com outro perfil, já no século XIX; notando-se, contudo, que a contribuição maior do negro no país foi a do trabalho, nos serviços mais duros e tarefas mais infamantes, recaindo sobre os ombros dos escravos – “duros e valentes”, desde a economia da cana de açúcar no Nordeste, nas lavras das Minas Gerais, em suma, na Colônia, Império, República e, nas devidas proporções, até os nossos dias do século XXI. Como narra Edison Carneiro:
“São os capoeiras da Bahia, que se cobriram de glórias no assalto ao Forte Curuzu, na guerra com o Paraguai. É o negro Marcílio Dias, orgulho da Marinha, herói da batalha do Riachuelo. É esse trio inigualável – Luiz Gama, José do Patrocínio e Reboças – que tão bem representa a contribuição do homem negro à abolição do elemento servil. São os marinheirosde João Cândido, na revolta de 1910, acabando de uma vez por todas com os castigos corporais na armada. São os negros e mulatos da Coluna Prestes, levando ao interior do Brasil a palavra da confiança e da liberdade. São os pardos e pretos que participaram da força Expedicionária Brasileira, que em terras da Europa auxiliaram as Nações Unidas a esmagar o fascismo e a criar o mundo de amanhã.”
Vejo que são tantos os aspectos dando importância e dignificando a vida do negro no Brasil, que não tenho como narrá-los em detalhes em página de jornal. Na parte Os Pioneiros, Edison Carneiro, através da insigne palavra de Arthur Ramos, um dos renovadores do tema, descreve os estudos e realça a Escola fundada por Nina Rodrigues, nascido no Maranhão, professor da Faculdade de Medicina da Bahia, onde o assunto foi estudado pela primeira vez no Brasil, através de método científico reconhecido, respeitado, a ponto de virar Escola homenageando seu ilustre fundador, Raimundo Nina Rodrigues que, não raro as influências teóricas racistas da ciência antropológica da época, procedentes especialmente da França e que não perdoaram nem Euclides da Cunha e se acentuaram em Oliveira Viana, não deixou de ser o pioneiro principal nesses estudos no Brasil, restando como segundo, o também inesquecível Sylvio Homero, com O negro – objeto de ciência. De todo modo, a famosa “Escola Nina Rodrigues”, é clássica, ninguém podendo omiti-la, como base, inclusive, do surgimento da ulterior “Escola de São Paulo”, mais liberta das teorias racistas do estrangeiro, surgida várias décadas depois, através de talentos como o de Florestan Fernandes, por exemplo, certamente o maior sociólogo brasileiro.
Com Marcha da Abolição, já são documentos fundamentais do nível de Joaquim Nabuco, Ruy Barbosa, José Bonifácio, dentre muitas outros, sem os quais, por certo, não teríamos essa “Marcha da Abolição”, que ocorre somente em 13 de maio de 1888, sem as condições estruturais esperadas e condições lamentáveis que bem conhecemos, estando por isso, até o presente, sendo reciclada e compensada pelas políticas afirmativas. Na terceira parte, sob escravidão, Edison Carneiro reúne documentação primorosa retratando as misérias e peripécias do escravismo brasileiro, numa abrangência riquíssima de informações a esse respeito, mostrando dispersão e falta de escravos, negro sob domínio holandês, desabafo de Henrique Dias, castigo e sepultamento de escravos, lendas, fortes braços, negrinho do pastoreio, comércio e extradição de escravos, escritura de escrava, diamba, tratamento, assassinato de senhores, o pai João, valor dos escravos, essa negra fulô, de Jorge de Lima, suplícios, negro como soldado, Pai contra mãe, conto de Machado de Assis, sem esquecer “Vozes d’África” e O Navio Negreiro (tragédia no mar), de Castro Alves.
Em As reações do negro, também rica de dados historiográficos, o destaque são as revoltas nos quilombos, de certo modo abordadas inicialmente. No Folclore, o escritor consegue formar um conjunto de importantes costumes, lendas, provérbios e manifestações artísticas, caracterizadores do que se chamaria “folclore negro” ou vinculado a esse segmento étnico, mostrando uma das grandes participações desse segmento na vida cultural do país. Nas Religiões, vistas a partir de Candomblés na Bahia, além de pioneiro, da abrangência do tema e sua relevância no Brasil, Edison Carneiro, valendo-se, sobretudo, de Nina Rodrigues, Arthur Ramos, Mário Morais, Martiniano do Bomfim e alguns outros importantes estudiosos, coloca o “assunto” em evidência como ninguém tinha feito antes, acredito só tendo como obra “parecida”, a descrição, interpretação, méritos acadêmicos aprimorasse e a grandeza de As Religiões Africanas no Brasil, de Roger Bastide, que chegou a ser aceito por essas religiões, para não chamá-las de seitas.
Enfim, as Figuras de Negros e sob a República, partes onde além de evocar e destacar Rebouças (Antônio Pereira), Luiz Gama, José do Patrocínio, Tobias Barreto, Manuel Querino, Lima Barreto, dentre outras estrelas dignas de serem lembradas, em fase republicana, às vezes com os mesmos ícones, recorda a singular vestimenta e os originais alimentos dos negros, incluindo aí o munguzá, descrito por Solano Trindade; a revolta dos negros marinheiros de 1910, no Rio, a vivandeira da Coluna Preste, de Jorge Amado, o canto para as mulheres negras, de Aydano do Couto Ferraz e o interessante estudo do negro em São Paulo durante o século XX, de Ciro de Pádua, mostrando Edison Carneiro que sua Antologia do Negro Brasileiro se elenca entre os raros livros de todos os tempos.
(Martiniano J. Silva, escritor, advogado, membro do Movimento Negro Unificado (MNU), da Academia Goiana de Letras)