Carmo Bernardes não chegou ao seu centenário, como também não chegaram o dr. Altamiro de Moura Pacheco e o catalano Glicério Coelho, pai do Geraldo Coelho Vaz. Faltaram-lhe 19 anos.
Carmo não foi um bom orador, pois sempre evitou todas as formas retóricas, mas agradava quando falava porque tinha o que dizer.
Carmo Bernardes,o nosso saudoso amigo, fomos colegas nas letras, no jornal e na televisão, nas pescarias no rio Araguaia e papeiros confidentes nas feiras livres da cidade, também em nossas casas, sempre com originais para uma troca de ideias. Por isso terei muito o que dizer deste ilustre mineiro-goiano. Minas e Goiás têm quase os mesmos usos e costumes. Dizem que Goiás é uma extensão de Minas e o goiano é um mineiro cansado.
Carmo Bernardes foi um cidadão que deveria existir um em cada muitos lugares desse nosso querido e sofrido Brasil. Homem do povo, escrevia e falava a linguagem do povo. Uma vida, uma existência no tempo é um relâmpago, é um fiapo de capim seco que se queima num relance, num átimo, sob o sopro do vento. Consta nas Sagradas Escrituras que o Homem foi criado à imagem e semelhança de Deus, e Deus é a Natureza, onde tudo é perfeito e se processa em milhões de anos, mas a criatura humana se desgasta rapidamente e vive tão pouco. Os idosos deveriam ser compensados, presenteados no fim da vida com saúde e aconchego, calor familiar e de amigos. Apesar de viver mais do que a média, o que deu para o Carmo Bernardes os seus 80 anos, quando disse na sua crônica publicada no dia da sua morte, que ele precisaria viver pelo menos até os 90 para terminar a sua obra, livros começados e projetados. Autodidata, filósofo do povo, a sabedoria popular perdeu uma grande parcela. Mas a vida valeu, porque sempre fez o que quis e viveu como quis. Assim partiu Carmo Bernardes da Costa, um homem autêntico, verdadeiro, honesto, um sábio das coisas do sertão e do povo interiorano. Apagou-se, não um dicionário memorial, mas, sim, uma enciclopédia ambulante colorida, porque com muitas cores, todo o colorido contido na Natureza está na sua obra, as plantas, a água, os pássaros, os animais, as aves, os peixes e as borboletas de todas as nuanças, de todos os matizes inimitáveis de Deus. Foi mestre isolado da cultura popular do Centro-Oeste, onde pontificou durante toda a sua vida. Finou-se um amigo, mais do que um amigo: um mestre conselheiro. Foi-se um mineiro que chegou a Goiás muito antes do progresso, progresso que somente despontou com os adventos de Goiânia e Brasília. Acabou-se o fazedor de monjolos, de pilão, o construtor de carros de bois, de tear, de currais e de porteiras. Partiu para o mundo desconhecido, o violeiro, o catireiro, o inventor de modas de viola. Faleceu o dentista prático, o jornalista autêntico, sem diploma. Deixou-nos o contador de causos, o botânico caipira, o curandeiro-doutor-água-fria dos remédios do mato. Hamilton Carneiro já não fala mais com o seu capiau. Já não existe mais o cientista do sertão, o caçador e o pescador amigo dos bichos e dos peixes. Abandonou-nos o trançador de laços e o fabricante de arreios e arreatas. Já não existe o autor dos 14 livros publicados, todos eles de amor a Goiás, de amor à boa terra que o acolheu, de amor a todos viventes do mato, a flora e a fauna e também o Homem. São 14 livros de raízes, das nossas raízes, das raízes pregadas na terra, raízes que saíram da terra, do sangue da terra, do fertigiloso chão goiano!
Gostava e fazia questão de ser original. Escrevia à maquina e não queria nem saber de computador, mas um dia o peguei de veia-boa,fiz que se sentasse frente ao meu computador e mandei que escrevesse qualquer coisa, o que fez a contra-gosto,dizendo: – Olha aí a porcaria que saiu. Fiz ele deletar, colorir, aumentar e diminuir letras, espaçar e transferir frases... Aí ele me olhou com a cara mais boa e disse: – Vou comprar um trem desse e é ainda hoje! E comprou. O mesmo se deu com o José Mendonça Teles, dias antes, que não se desapregava da sua “Olivetizinha”.
A ORIGEM – No fim e no começo deste último século, citando apenas São Paulo e o Rio de Janeiro, as principais cidades da época, o transporte era precaríssimo, ainda com bondes puxados à tração animal, sendo substituídos, posteriormente, pelos bondes elétricos. Os fabricantes se modernizavam e aperfeiçoavam os seus veículos. Imagine-se no começo do século, em 1920, numa corruptela como Patos de Minas, encravada na divisa do Triângulo Mineiro, quando o carro de bois já ia ficando para trás, assim como as tropas e as montarias, surgindo os primeiros veículos motorizados. Os caminhões carregando a carga de dois ou três carros de bois e as jardineiras abertas levando gente muita de uma vezada só. Era o progresso expulsando os carros de bois, as tropas e as montarias. Expulsando os veículos transportadores fabricados pelos mestres carapinas da madeira e os mestres do couro, fazedores de carros de bois, de arreatas e trançados de couro. Era o progresso com mais eficiência, encurtando as distâncias. Era o roncar dos motores substituindo os gritos enérgicos dos carreiros e o canto dolente e nostálgico dos carros-de-bois nas chapadas imensas do Brasil Central. Como ficariam os carapinas, os artesões, os artífices do couro e da madeira? Como ficariam, sem serviço, os fazedores de carros de bois e os trançadores de laço? Fazer o quê? Mudar de ramo? Ainda bem que no interior sertanejo há os compadres que, entre os quais, se socorrem. Uma cuia de feijão, uma medida de arroz, uma xícara de açúcar mascavo, uma pitada de sal, um tiquinho de banha de porco, um naco de rapadura, uma lasca de toucinho ou um punhadinho disso e daquilo, porque isso são recursos quebra-galhos dos proletários da cidade, mas, sim, uma ou duas quartas ou sacas de cada uma dessas necessidades emprestadas a prazo de safra. Os famosos carapinas, os grandes fabricantes dos carros de bois, dos monjolos, dos engenhos de cana, dos teares, dos pilões, esses não eram roceiros, eram profissionais artífices e tinham o seu amor próprio. Não iam tocar roça, e nem criar porco, a não ser o que sempre fizeram, para o gasto, uma plantaçãozinha e um ou dois capados no chiqueiro, com trato de restos de cozinha. A solução era arribar, procurar um lugar distante, que fosse, para continuar o trabalho, exercer a profissão e manter a família, sempre numerosa.
Em Goiás os carros de bois saleiros levavam até seis meses na ida e volta para trazerem sal de Araguari, a ponta terminal da Estrada de Ferro Mogyana. Além do sal traziam também as novidades surgidas lá-de-baixo, como era conhecido o eixo Rio-São Paulo. Dizem que não há nada mais velho do que um jornal de ontem, mas no sertão um jornal de seis meses foi novidade. As fábricas americanas e européias iam acelerando a produção de veículos motorizados e no sertão os fabricantes de carros-de-bois iam perdendo a sua freguesia, os bois indo para as charqueadas e os carros, como peças de museus, para debaixo das gameleiras frondosas de frente às sedes das fazendas.
As indústrias de tecelagem também iam encostando os teares manuais, relegados ao Folclore. As máquinas de beneficiar grãos, arroz, café e milho, transformavam os monjolos, os pilões e as trapizongas em peças de decoração. Luiz Bernardes da Costa, pai do menino Carmo, afamanado fazedor de carros-de-bois e de tudo o que fosse de madeira e de couro, não queria ir tocar roça, nem na sua região de Patos de Minas e nem em outra qualquer que fosse. Era um profissional das ferramentas e dos cálculos e não pretendia retroceder, voltar ao “início do começo do princípio”. Não desejava ser transformado em roceiro, pois roceiro, sabia, era vitima de deboches, de troças do povo da cidade, como foram impiedosos com os roceiros-caipiras, os famosos escritores Monteiro Lobato e Cornélio Pires. Cornélio Pires tinha uma olaria de fabricar tijolos em Tietê e num sábado, já tarde, um cidadão chegou perguntando por ele:
– Ô moço, cadê o dono da olaria?
Aí o gerente, um típico tabaréu, respondeu explicando:
– Seu Cornélio, pra ganhar dinheiro pra pagar os empregados aqui da olaria, ele foi pra cidade fazer graça, arremedar nóis no circo. Monteiro Lobato criticava a preguiça do roceiro brasileiro, criou o personagem símbolo, Jeca Tatuzinho e punha culpa na mandioca, um pão que já vem amassado da Natureza, bastando um tiquinho de fogo. Disse que se a mandioca medrasse na Holanda, os holandeses não teriam construído os diques que seguram a invasão das águas do mar. Carmo Bernardes não concordava com eles e deu início ao seu arredio aos escritores mal informados, que escrevem regionalismo dentro dos gabinetes literários. Manteve brigas escritas com os mandões, sejam políticos, sejam coronéis, seja o Governo. Em Anápolis gostava de fazer testamentos de Judas, pelos sábados da aleluia, aonde malhava os chefões, principalmente os coronéis tatuíras que são os grileiros, tomadores de terras dos sitiantes humildes. Carmo Bernardes nasceu no dia 2 de dezembro de 1915 e foi registrado no dia 12, um mal entendido entre o pai declarante e o escrivão, quase sempre semialfabetizado, como foi também o meu caso: nasci no dia 24 de julho e fui registrado em 24 de outubro. Carmo Bernardes formou, com os três ótimos escritores goianos, da geração de 1915: José‚ J. Veiga, Bernardo Elis e Eli Brasiliense, todos os quatro nascidos no ano de 1915. A sua mãe, Ana Carolina Barbosa, mais conhecida por Sinhana, era devota de N. S. do Carmo, e venerava uma estampa da Santa numa folhinha na parede do quarto. Às vésperas do parto, dizia: – Se for menino-homem, vai chamar Carmo; se for menina-mulher, vai ser Maria do Carmo. Ganhou, ainda depois do filho, duas filhas, a Júlia e a Maria José. Quando lhe caiu o umbigo foi curado com azeite de mamona e pó de fumo torrado, começando aí, bem cedo, a se servir da medicina caseira e estudá-la pelo resto da vida. Saiu de Patos de Minas em 1920, com cinco anos de idade, rumo à cidade de Formosa, o Arraial dos Couros, e somente voltou à sua terra natal, a passeio, em 1969, quase meio século depois, quando Patos de Minas já era cognominada A Capital do Milho. Depois das primeiras letras com a mãe, entrou na Escola Municipal de Formosa, com o mestre Frederico Pinto de Castro, onde ficou por quatro anos. Casou-se em 1935, com Maria Nicolina do Carmo, ele com 20 anos e ela com 15. Viveram casados por 61 anos. Conheceram-se, quando ele tinha 10 anos e Maria Nicolina, 6, época em que o pai Luiz Bernardes da Costa, saindo de Cachoeira dos Ivo, em Anápolis, foi para a fazenda Degredo, do pai de Maria, em Capoeirão, atual Damolândia, cumprir encomenda de assentar um engenho de cana e fazer o madeiramento da casa-sede da fazenda. Carmo Bernardes aprendeu a mexer com couro com o tio materno, Francisco, famoso trançador, e com o pai, Luiz Bernardes. Luiz Bernardes da Costa, tocando boiada e acompanhado do filho Carmo, fazia trabalhos de trançar couro nas fazendas por onde passavam e os pequenos serviços, como colocar uma argola num laço, que ele classificava de “servicinho”, dava para o filho fazer, menosprezando os fazendeiros, ele que era de gênio rude e brutal. Carmo Bernardes e Maria Nicolina do Carmo tiveram 14 filhos, sendo sete homens e 7sete mulheres. Morreram nove e ficaram as cinco filhas: Aimê do Carmo, Anita Bernardes da Silva, Ana Maria do Carmo, Maria Ana do Carmo Andrade e Eneida Maria Bernardes Lelis. Salvou-se por sorte, de ter lobisomem e bruxa, na família, porque, segundo a crendice popular, só se evita o encantamento de virar lobisomem, quando o casal tem sete filhos homens e o mais velho batizar o caçula, que deverá ter o nome do pai, caso contrário, este último vira lobisomem. O mesmo acontece com a irmã mais velha e a mais nova, caso a mais velha, a Dindinha, não batize a caçula, esta também virará bruxa. Mas Carmo Bernardes não acreditava nem em lobisomem e nem em bruxa. Supria as necessidades que surgissem, pois foi até parteiro de uma das filhas. Bom cozinheiro, aprendido nas suas andanças sertanejas e em contraste com a esposa Maria, muito jovem, que fazia peixe sem tirar as escamas, punha açafrão na guariroba para colorir e amargar mais, salgando tanto a carne que não podia ninguém comer, a não ser o Carmo em lua-de-mel, é claro! Pregava botões nas calças do marido, mas com os botões do lado de fora da braguilha. E ele, o maridão, gostava demais da conta de ir em festas, mas sozinho, para pagodear e arranjar namorada, deixando sempre a mulher em casa. Maria, contrariada, mas sem condições de contestar o marido macho e mandão, certa ocasião projetou e executou uma reza braba para que chovesse, uma chuva forte que o impedisse de ir a uma festa de casamento, onde passaria a noite e não se sabe quantos dias ficaria por lá. Era o tempo da seca, não era tempo de chuva, mas a reza braba foi forte e valeu. Aliás, valeu até demais: caiu uma tempestade da ventania varrer tudo, com aguaceiro de fazer cachorro beber água em pé e até matar sapo afogado. A fazeção de farinha foi esbandalhada, mandioca rodando na enxurrada, as coberturas dos ranchos varridos pela tempestade, árvores revirando as raízes pra cima. Arrependida, queimou folhas bentas pegadas no Domingo de Ramos. Mas o negócio valeu: agora a festa do marido seria ir pra cama. E Maria, zombeteira, convidou-o:
– Não vem dormir, não, seu Carmo?
E ele, bem azedo:
– Com você, não, sua coruja velha! mandraqueira!...
Já se considerava goiano e numa festa de pagode e catira em São Francisco das Chagas, quiseram até matá-lo, quando cantou uma moda de sua autoria, blagueando os mineiros, seus conterrâneos, dizendo lá na moda de viola, que mineiro vai às festas vestindo camisa encardida de algodão, usa polainas nas pernas, esporas no calcanhar e de pé no chão. O seu maior desejo era adquirir uma capa gaúcha, a famosíssima capa Ideal. Roceiro nenhum dava conta de possuir uma capa Ideal. Aliás, O capa, que capa na linguagem roceira é masculino. Carmo Bernardes conseguiu comprar a sua Ideal,substituindo a velha de tecido recoberto com leite de mangabeira, que, por sua vez, também sucedera a tradicional e miserável “caroça” de palha de buriti. A capa Ideal é forro pra dormir, cobertor pra chuva e frio, dando pra agasalhar os dois, cavalo e cavaleiro. E o mais importante: dava também status, que somente boiadeiro comprador de gado é que usava uma capa Ideal. Carmo Bernardes briquitou sempre numa única região, compreendida entre Formosa, São Francisco, Damolândia, antiga Capoeirão, Matão, atualmente Ouro Verde, Nerópolis, Rubiataba, Pirenópolis, Jaraguá e Anápolis. Anápolis, considerada, à época, a boca e a porta do sertão. Em casa era altivo, ríspido, caturro e turrão, e Maria, a boa esposa, casada de novo, pegava pão quentinho na padaria, acabado de sair do forno, passava manteiga e se deliciava, exclamando, dando até rimas: – Ah, eu devia ter casado com padeiro / pra comer pão o dia inteiro!... Carmo, raivoso, na base da ciumeira, foi à padaria e comprou um saco cheio de pães e jogou em cima da mesa, vitorioso, afrontando: – Come pão aí que chegue, esfomeada! Esperador e pescador, entrou em muitas frias, por esperar o que não tratara, a rede no galho de pau das muitas árvores de frutas do mato. A pesca e a caça abusivas naquela época não eram consideradas predatórias devido o excesso de animais e peixes. Carmo Bernardes pescava de vara e molinete e não depredava, apesar da Ecologia ser desconhecida, onde a caça e a pesca eram fartas. Matava somente para manter a cozinha de casa e dos acampamentos. Exímio atirador, ganhava apostas em disputas de tiro a longas distâncias e foi caçador remunerado por fazendeiros, pra matar onças e jacarés predadores de gado e porcos.
Maleitas ele pegou várias, inclusive a perigosa Caladinha, a falcíparum, que mata em 24 horas. Ficou entre a vida e a morte nos hospitais Auxiliadora e Santa Luíza, de Goiânia, mas isso bem depois, quando já residia na sua tão decantada Casinha Verde da Macambira, onde viveu sempre misturado aos xerimbabos, animais selvagens domesticados que ele muito gostava. A vida de Carmo Bernardes sempre foi uma rede de lutas pela sobrevivência dele e da família numerosa. Certa ocasião, nos idos tempos da sua vida recente de casado, fugira da esposa, de Capoeirão para Anápolis, e a mulher Maria, depois de oito dias, saudosa e para não perder o seu homem, também fugira do sogro, que a vigiava e bateu atrás do marido, sabendo onde encontrá-lo, porque, segundo ela, “onde está o boi, está o chifre”.
O marido a recebeu, não menos como de costume, com uma pergunta ríspida:
– O que você veio fazer aqui, Maria?
– Uai, vim atrás de você, ‘tá pensando que é casar e largar pra lá?
Sertanejo-científico, autodidata, passou a vida pesquisando as coisas naturais do mundo interiorano. Foi professor de roceiros ensinando-lhes as coisas da roça. Estudioso do Meio Ambiente, termo que ele somente veio a conhecer bem mais tarde, denunciava os atentados contra a Natureza. Cordato e teimoso, sério e irônico, bom e malicioso, polêmico por natureza, foi, ao mesmo tempo, educado e malcriado. Para desancar o pau, não escolhia cara, dependia do toque da música da hora. Se entrasse nele fora do jeito, levava o troco, ou na palavra falada ou na palavra escrita, tanto fazia. Não bajulava, mas gostava de elogios, principalmente sobre o que escrevia ou fazia. Aprendeu o ofício de dentista em Anápolis, onde morou 14 anos, mas começou a trabalhar em Rubiataba. Dentista prático e protético, itinerante nas corruptelas e nas fazendas, sempre carregando a tralha, o gabinete e a família em lombo de burro, como se fossem ciganos ou piqueniques forçados. Trabalhava de dia e à noite pagodeava, tocando viola, cantando modas, dançando com as moças e sapateando catira. Somente fazia extrações de dentes e chapas dentárias, as tão temidas e salvadoras dentaduras, também conhecidas por “ferradura”, para centenas de desdentados, inclusive para si próprio e para a sua fiel e leal companheira, a alegre Maria Nicolina do Carmo, que as usa até hoje. Certa vez colocou uma “ferradura” na boca de um cliente e recomendou, com severidade, que não a tirasse nem pra dormir, até se acostumar. No dia seguinte, pela manhã, o pobre homem chegou afobado, vermelho feito peru, com a queixada inchada, suando por todos os poros, pedindo para que o doutor dentista, pelo amor de Deus, arrancasse aquela desgraça, pois passara a noite toda afoitado, correndo pelos pastos, espantando cachorro e assustando os vizinhos. A profissão que mais espanta, afugenta os clientes é a de dentista, mesmo atualmente, quando a Odontologia progrediu bastante. Imagina-se no tempo dos dentistas práticos, e o pior, os ambulantes, como foi Carmo Bernardes, na segunda etapa da sua vida profissional, que não possuía uma aparelhagem e ferramentas adequadas. Se até hoje há muita gente com pavor dos gabinetes dentários, devido a dor, faça-se uma ideia naquele tempo que o tratamento era na marra! As crianças eram amarradas à cadeira e seguras pelos pais, como se fossem gado brabeza chegando ao moeirão. A anestesia, quando tinha, já era uma temeridade o cliente levar aquelas espetadas de agulha rombuda nas gengivas, o dentista suando em cima da vítima e a vítima suando de dor e pavor, louca pra sair daquela cadeira de tortura. E a brutalidade do temido boticão, e a broca trepidante e enervante do motor de pé? E qual a assepsia do dentista da roça? Carmo, com os dedos amarelados pelo sarro dos cigarros trabalhando na boca do paciente e a fumaça constante do cigarro de palha, de fumo forte, nas narinas, acabava anestesiando o freguês. Não aceitava ninguém pisar-lhe no calo, que dava o troco; assim foram também os homens da sua família, um povo rude e brabo. Ferrenho inimigo das multinacionais, nunca usou, em sua casa, óleo de cozinha. Dizia que sertanejo nenhum passa uma semana sem comer torresmo e nem carne de porco apurada na gordura e nem lasca de toucinho salgado, no tempo do frio, que mandioca boa é frita, assim como feijão-tropeiro, feijão galado de ovo frito, a matula pra viagem também chamada de “frito”, tudo na base de frituras, só na gordura de porco, nada de óleo. Perguntava: “Você já viu, companheiro, roceiro, sertanejo algum sofrer de colesterol? Pois então.” Sempre ensinando, fazia escola com as modas de viola que compunha, falando dos carros de bois, dando nomes aos bois, dando nomes em tudo, em todas as peças do carro, do engenho de cana, do tear manual, do monjolo... e também das madeiras usadas em cada um desses trens e as suas medidas com as capacidades. Passava um mês no Araguaia com toda a família, desde 40 anos atrás, quase sempre na confluência do distante Rio do Coco.
Fumante inveterado de cigarros de palha, deixou de fumar por duas vezes. Bebia cachaça, entendia, ensinava fazer, mas não gostava de alambicar. Bebeu e fumou demais da conta, mas depois deixou, só voltando, ultimamente a bebericar um uisquizinho importado e um bom vinho do Porto, daquele que vem escrito em alto relevo no fundo da garrafa: “Abrir do outro lado.” Pedia sempre, para a família, sabendo que um dia iria ficar em eterno decúbito dorsal, pois ninguém fica pra semente, que continuasse a vida do jeito que sempre fora, inclusive fazendo as excursões ao “io Araguaia. Mandão, mas “bão”, tudo o que ganhava a mais do salário distribuía com as filhas. Não contraiu doenças orgânicas, mas sofreu muitas depressões e muitas angustias, principalmente depois que foi cassado pela Revolução de 64. Desejou, também, possuir um terno 120, daqueles imaculadamente brancos, porém, nunca adquiriu porque não via como usá-lo, a não ser na sua posse na Academia e quando recebeu o título de Cidadão Goiano, na Assembleia Legislativa. Achava que um “aparelho” de roupa luxuoso assim, ostentava demais, acintava muito, o luxo não jogava, não ornava com a sua simplicidade de mocorongo. Que ficasse com o terno branco 120 os doutores e os pecuaristas. Estudava à noite, em casa. Os amigos de Anápolis, Silvio e Basileu Pires Leal, emprestavam-lhe livros, e como o querosene fosse escasso, ele os lia e estudava à luz mortiça das chamas das labaredas da fornalha. Basileu Pires Leal tinha uma gráfica, foi um grande e fiel amigo de Carmo Bernardes, emprestando livros e incutiu-lhe as primeiras lições do Socialismo Vermelho. Nacionalista e comunista de rótulo pregado nas costas, muito principalmente pelos livros que leu e o entusiasmou, tornando-o um desancador de coronéis, desses que grilam terras e apoiam o Governo situacionista e perseguem os pequenos proprietários, tornando-se os poderosos latifundiários. Ajudou a fundar o Partido Comunista em Anápolis, sendo eleito Secretário da Organização. Carmo Bernardes também fazia literatura de cordel, a exemplo do seu amigo Paulo Nunes Batista, o maior cordelista que os goianos já conheceram, e sempre malhando os oportunistas e situacionistas. Abriu um escritório de desenhos de plantas de casa em Anápolis, cumprindo uma determinação de índole há muito tempo cultivada na cabeça. Fez amizade com o engenheiro anapolino dr. Geraldo d'Abadia de Pina. Fazia plantas de casas e o dr. Geraldo assinava. Nas suas primeiras construções, começando por Nerópolis, (antigo Cerrado), desistiu logo, porque não era bom cobrador, mal remunerado e difícil de receber o seu dinheiro. De estopim curto, como sempre fora, deu o fora, ficando no prejuízo e acabou desistindo da profissão, somente construindo a sua Casinha Verde da Macambira. Com pouco tempo fechou o escritório e foi mexer com uma tipografia, se tornando o “largo al fatotum” do jornalzinho A Luta, onde ele era o próprio jornal, fazendo, praticamente, quase tudo, além dos companheiros, Basileu Pires Leal, Armando Faustino e o dono do jornal, Antonio Gomes Pinto que, numa miséria franciscana, acabou parando no Abrigo de Velhos. Batalhou pela anistia dos presos políticos e para a criação do Monopólio Estatal do Petróleo, também pela luta contra as multinacionais. Por tudo isso, devido a esse seu ideal, “ideal besta” de querer consertar o mundo, foi odiado, carregando nas costas um rótulo vermelho que o fez perder 20 anos de vida, sem sair da condição de pobreza, pobreza que classificou de legítima miséria, só não indo para a miséria absoluta devido o amparo que recebeu das filhas. Alegava que já fizera de tudo, só não puxou o saco de ninguém, mas foi por falta disso que atrapalhou muita a sua vida. Não sabia que, quem não puxa saco, puxa carroça. Com a sua capacidade intelectual e manso, cordato, poderia ter usufruído de uma vida bem melhor. Em 1958 foi para Brasília, para tomar conta do almoxarifado de uma companhia construtora, onde o dr. Geraldo de Pina era o engenheiro chefe. Lá na nova Capital, trabalhou como desenhista de arquitetura, profissão adquirida na raça, na base da precisão. Em 1959 veio para Goiânia, no Governo de José Feliciano, como secretário assessor do dr. Geraldo de Pina, que assumira a Sevop (Secretaria de Viação e Obras Públicas), para quem escrevia os discursos, cuidava da correspondência e também, como desenhista particular de plantas urbanas, que o dr. Geraldo assinava. Foi quando comprou o terreno e construiu a sua Casinha Verde da Macambira, de onde endereçava os seus artigos e crônicas para os jornais e revistas. Somente aí, então, mandou vir a família de Anápolis.
Depois, nos governos de Leonino Caiado e Irapuan Costa Júnior, continuou no mesmo cargo de assessor de responder cartas e escrever discursos. Passou pela Secretaria Especial do Meio Ambiente, sendo despedido no Governo de Iris Rezende Machado, embalado numa ruma de outros 20.000 demitidos, ficando dois anos desempregado. Posteriormente foi convidado a assessorar o deputado Eurico Barbosa, na Assembleia Legislativa. Depois o dr. Geraldo foi Presidente da Celg, em Goiânia, levando Carmo Bernardes como o seu secretário geral, onde escrevia os discursos oficiais. Comandou a picada para a abertura da estrada até a usina elétrica São Feliz, no rio Tocantins, da Celg, em 1962. Em 1965, fugindo de uma quase certa flagelação pelo Regime Militar imposto pela Revolução, foi dar com os costados na Ilha do Bananal, em Santa Isabel do Morro, no rio Araguaia, ajudado pelos irmãos Waldir e Edir Frauzino, para gerenciar os operários e o canteiro de obras da reforma do Hotel JK. Lá ele chegou ao seu paraíso, o rio Araguaia. No JK as baixelas e os talheres eram de prata, a louça de porcelana chinesa, e os copos, de cristal da Boemia. Mas tudo desmoronando, se acabando no mais perfeito saque e jeitinho brasileiros. Até o nome JK sofreu a bordoada da tirania: o Hotel continuou sendo JK, mas não mais o JK do maior presidente do Brasil, até então, Juscelino Kubscheck, mas, sim, o JK do presidente dos Estados Unidos, John Kennedy, que talvez nem nunca tenha ouvido falar de rio Ara- guaia. Era necessário aproveitar as iniciais timbradas, gravadas na prataria, nos cristais e nas roupas de linho dos serviços. De vez em quando descia um avião militar para usufruir do luxo e mordomias do hotel, pescar e caçar, que a pesca e a caça eram fartas, sendo o “subversivo” e foragido Carmo Bernardes o guia, o canoeiro, o remador, o que levava os militares, seus antagonistas, aos poços mais piscosos e às esperas nas árvores que estavam derrubando flores ou frutas, uma espingarda cartucheira entre eles e muitas piranhas famintas à espera de qualquer coisa que caísse n'água. Não fora reconhecido porque o nosso escritor estava irmanado com os caboclos e os índios carajá tal qual um deles, sem tirar e nem por. Levou a sua velha máquina de escrever e de lá enviava os seus escritos para os jornais e revistas, faturando, assim, o sustento da família. Muitos dos seus romances tiveram os seus apanhados ali, na Ilha do Bananal. Só saiu de lá no mesmo ano, em estado de coma acometido da terrível falcíparum, a Caladinha, aquela que se não for socorrido em tempo, mata em dois dias. Saiu da Ilha do Bananal e foi para Brasília estirado no piso de um avião da FAB, e de lá para Goiânia, de ônibus, os passageiros achando que estavam viajando com um defunto. Neologista, estudioso da linguagem coloquial, escrevia e pronunciava “Ciriema e sicupira, emendava palavras, aquelas que os roceiros disparam sem separá