Naquela época, os caminhos que ligavam a cidade onde eu morava ao resto do mundo ainda não eram revestidos por massa asfáltica e, quase sempre, eu chamava Roney, Érick, Edu e, às vezes, outros colegas para caminhar nas estradas. Eles iam apenas para matar o tempo, fazer algazarra e barulhos, mas eu ia para matar a saudade do tempo em que eu morava em fazenda e passava ali naquelas estradas todos os dias pelas manhãs. Depois de muito caminhar parávamos em frente uma casinha, situada nas proximidades do pé da serra, onde dantes eu morava com a minha família. Feito horas que estávamos ali sentados e assim que o início da noite derramava sobre o fim da tarde crepuscular levantávamos e íamos embora, sentindo aquele cheiro de poeira da estrada.
Mas tão logo, fiquei sabendo que uma empresa fora contratada pelo governo para estruturar e asfaltar aquele pedaço de chão, desde a rodovia mais próxima até o perímetro urbano de nossa cidade. De início, eu não acreditei. Primeiro porque aquele lugar onde eu morava parecia ser os confins do mundo, segundo porque anos atrás, quando eu ainda morava na casinha no pé da serra, já ouvia o comentário de que em breve o progresso chegaria ali e, depois, apesar de ainda ser muito pequeno, eu não conseguia pensar naquele ambiente transformado.
As pessoas contavam que tempos atrás um engenheiro havia ido lá para fazer a demarcação da estrada. E era verdade, os vestígios estavam lá a olho nu, muitas estacas numeradas fincadas no chão, só que depois da sua estada lá, tudo ficou esquecido por muitos anos. Daí o pensamento de que o asfalto jamais chegaria. Mas assim como eu, muitos estavam equivocados, pois logo, a teoria se transformara em prática e as máquinas começaram a cortar o matagal, enlanguescendo, ampliando e alinhando a velha estrada aos padrões propostos pelos sábios do desenvolvimento. Em alguns lugares, tiveram que abandonar a antiga estrada e abrir novas passagens na caatinga nordestina a fim de conseguir melhores resultados, à luz dos engenheiros. Os trabalhos foram iniciados a partir de um trecho da rodovia até chegar à nossa cidade.
Eu estava alucinado com tantos acontecimentos e sempre que conseguia um tempinho extra eu seguia pela estrada para matar a minha curiosidade em saber como tudo era feito. Às vezes, eu ia sozinho, outras vezes acompanhado de alguns conhecidos de idade aproximada. Numa época em que o outono despiu o arvoredo wanderleense de tal forma que nem as paineiras, juazeiros ou umbuzeiros sombreavam as estradas, fui com Adri, um menino que brincava comigo todos os dias, quando eu morava na chácara do amigo do meu pai, quando mudamos para a cidade e com Cleros, filho da merendeira da primeira escola onde eu estudei. Seguimos serra adentro e notamos árvores arrancadas inteiras pelas raízes, toda a vegetação estava destruída naquele trecho. Caminhões-pipas, caminhões-caçambas, tratores e tonéis cheios de combustíveis se misturavam às pessoas que trabalhavam furando o chão, cortando as pedras e caminhando para todos os lados. De longe parecia um formigueiro alvoroçado, prenunciando a chegada do inverno.
O sol estava muito quente e insuportável, a poeira e o barulho provocados pelas máquinas em movimentos eram intensos e abusivos e, mesmo com os nossos ouvidos e olhos sendo fustigados naquele cenário, ficamos observando por muito tempo, a estrada ser transformada. Cleros e Adri pediram permissão a um dos funcionários para olhar a estrada pelo topógrafo. Embora eu tivesse morrendo de vontade de observá-la também, fiquei envergonhado, não olhei e estou arrependido até hoje. Quando vejo alguém usando um desses aparelhos fico curioso para usá-lo por um pouquinho, mas prefiro não atrapalhá-lo.
Depois partimos em direção onde a estrada estava pronta para receber a massa asfáltica, chegamos a um lugar onde foi preciso ser feito um grande aterro, um alambrado e ficamos ali a contemplar a natureza e sua transformação provocada pelo homem, em nome do progresso. Deitado sobre o que restou da relva eu ficava a fitar o horizonte, fazendo a oração dos sábios, corroído pelas reminiscências, as quais ainda latejam no meu eu feito calo numa alma enclausurada e prestes a ser abatida.
Cleros foi observar uns tubos colocados para a passagem da água em épocas de chuva, Adri ficou perto de mim, do outro lado da margem da estrada, próximo de um penhasco, a observar tudo lá embaixo, de tal maneira que os seus olhos confundiam as imagens no negrume, transformando os caules das árvores secas em miragens. Levantei-me e aproximei de Adri. Olhamos para baixo e vimos tudo escuro, pois aquela parte da estrada ficou muito alta devido ao aterro. Jogávamos pedrinhas redondas ladeira abaixo e olhávamos até a hora em que ela desaparecia ou se misturavam e perdiam-se junto ao cascalho. De repente, Adri teve a ideia de descer de cócoras, deslizando pelo cascalho até lá embaixo, como as pedrinhas, fez isso por várias vezes, até que seu primo Cleros chegou onde estávamos. Cleros e eu nos rendemos à tentação de imitá-lo. Para descer era muito bom e animado, parecíamos patinadores numa pista de gelo, mas para subir, nos causavam muito cansaço, porém, tínhamos muito vigor, resistência e vencíamos a subida pelo mero prazer de descer escorregando, sujando e estragando nossas vestimentas, ao ponto de ralar a bunda.
Com esse comportamento, ficamos ali durante muito tempo, depois de sermos agraciados com o bailar de uma brisa fresca e o sol se entregar aos ensejos do entardecer voltamos em direção à cidade, passamos por um trecho da antiga estrada, a qual papai havia ajudado a abri-la, a machadas, anos atrás. Nesse momento, Adri e eu relembramos os momentos em que brincávamos de pique-esconde e de bandido e policial, quando éramos ainda bem pequenos, descemos, entramos numa fazenda, a qual antes era da minha família, bebemos água barrenta num dos tanques, matamos a sede e detraídos perdemos o exceder das horas e quando nos demos por nós o ambiente já estava revestido pela fuligem e clarões vermelhos, tão tarde que o dia se fechou cedendo lugar às trevas. Aceleramos. Ainda analisando o espaço geográfico, entramos no perímetro urbano e cada um de nós se dispersou para nossa devida casa.
Tudo aquilo para mim era uma coisa inovadora, única e inédita. Não que o asfalto fosse novidade para mim, eu já o conhecia há tempos, quando viajei com a minha irmã Luzi e meu cunhado Assis. O ineditismo estava nos equipamentos, nas máquinas, na forma usada para estruturar a estrada, e na maneira como os instrumentos eram manuseados.
Quando todo o trabalho chegou ao fim e a estrada estava toda coberta pela massa asfáltica, tudo parecia ter aproximado. A cidade parecia menor, a rodovia ter ficado mais perto, os lugares aonde eu sempre ia pareciam ter se aproximado e todos os caminhos se encurtados. De certa forma isso contribuiu e muito para os meus passeios nas proximidades da cidade que cada vez aconteciam com mais frequência.
(Gilson Vasco, escritor)