Mais de 40 anos atrás, provavelmente em finais de agosto de 1978, publiquei no jornal O Popular, de Goiânia, o artigo epigrafado que, certamente, merece republicação. Os historiadores, em particular, estão querendo saber como foram introduzidos os Movimentos Negros em Goiás. O assunto foi publicado em jornais e no livro Escrito nos jornais: tempo de aprendizagem, que editei em 2007. Estou à disposição dos interessados. Para começo de conversa, publico o que já mencionei.
Fui a Minas Gerais, com Brasigois Felício e Aidenor Aires, assistir à 11ª Semana de Estudos Afro-brasileiros, ocorrida de 15 a21 de agosto de 1978, promovida pelo Instituto de Estudos Africanistas de São Paulo e o Instituto de História e Arte de Belo Horizonte, entidades culturais presididas pelos historiadores Clóvis Moura e Marina Avelar de Souza.
Na abertura do conclave – quando lancei o meu Sombra dos Quilombos – constatei um fato que muito se comenta em Goiás – e que dizer de Mato Grosso – o de que os valores culturais do Estado, em todos os seus aspectos, são pouco conhecidos e divulgados alem do Paranaíba, o que é lastimável, não raro destaquem-se os Bernardo Elis, os Gilberto Mendonça Teles, os Siron Franco, dentre uns poucos, contistas, ensaístas, poetas ou pintores.
Ao constatar fora dos limites goianos esse tipo de desconhecimento que existe das coisas do Estado (um estudante de história da UFMG perguntou-me se haviam muitos negros em Goiás, alegando que desconhecia a estatística nesse sentido. Ao que lhe respondi que a última na qual ainda figura o negro é a de 1950, enquanto um historiador, de nome Waldemar de Almeida Barbosa, respondendo a uma pergunta que lhe fiz, afirmou desconhecer revoltas de quilombolas em Goiás); fiquei realmente convencido de que o Estado, através dos seus órgãos específicos, como as universidades, institutos, academias e outras instituições culturais, precisa promover com mais ênfase, em intercâmbio com outras unidades, os nossos valores maiores, históricos ou não.
Mas, ao reafirmar, além Paranaíba esse primeiro tipo de ingratidão que se nutre e se tem, efetivamente em desfavor de Goiás, fiquei a pensar mais profundamente, com os meus botões, meio tomado de uma ponta de deprimência: “E o danado do negro goiano, sem esquecer-se o de Mato Grosso, ou do Rio, Pará, o da Amazônia, como estaria? Do ponto de vista de sua identificação étnica, ou por um prisma dos seus valores éticos, religiosos, institucionais, linguísticos, teve o negro do Brasil Central, alguém, algum dia, a defendê-lo? Teria alguém, algum tempo, nele incutido uma consciência de autodefesa? É óbvio que não, a bem dizer, a defesa do negro no Brasil Central, como de resto em todo o País, por um ângulo de busca de sua identificação racial, só foi feita por ele mesmo, a partir do momento em que fugia para os matos, formando quilombos, tanto em Goiás, e como exemplo os da Serra dos Parecis, na Vila Bela do Mato Grosso, destacando-se o do Piolho ou ‘Maria Benguela’, também chamado da Carlota, hoje a comunidade negra mais isolada da Brasil; as entidades religiosas, em confrarias, como as irmandades dos pretos, as fugas, o desertor o criminoso, o marginal, ou o negro suicidando-se, ao que parece, todas são formas de autodefesa, originadas dos próprios negros.”
Porém, toda essa luta negra, no Brasil Central e alhures, foi frustrada e manipulada pela ideologia euro-ocidental do branco, através de uma série de estereotipias, desintegrando a raça num mito chamado ‘Democracia Racial’, numa autêntica ‘estratégia de genocídio do negro brasileiro’, como diria o escritor negro Abdias do Nascimento, não raro tenha conceito contrário a história oficial. Quer dizer: o negro brasileiro, com maior razão, ao que me parece, o do Brasil Central, não conseguiu conservar os seus valores culturais de origem, em que pese a luta em manter suas festas, os seus santos e religiões. E isso mesmo virou folclore no predomínio da ideologia branca, isso mesmo instituindo o estereótipo chamado ‘sincretismo religioso’, alegando-se que as religiões africanas, ao se encontrarem no Brasil com a religião católica, ter-se-iam amalgamado ou se fundido naturalmente, intercambiando influências de igual para igual, num clima de fraterna compreensão recíproca, conforme o dizer de Abdias do Nascimento em seu livro O Genocídio do Negro Brasileiro.
Mas, o que desejo realçar é que o negro do Brasil Central, mais do que o do litoral e o do sul, tem estado sempre mais distante das realidades nacionais e do mundo. Prossegue a ser um negro sem visão do Brasil e muito menos do mundo. Evidentemente, como de resto ocorre em todo o país, ele é um negro marginalizado e periférico, vou assim dizer. Quando ocupa alguma posição de destaque, é porque já virou ‘negro da alma branca’. Ao que sei, nenhuma reação ele esboça em busca de sua verdadeira identificação racial. Por assim dizer, se o negro do Rio de Janeiro, São Paulo, Salvador, alem de outros grandes centros, mesmo após 90 anos de legalmente livre, ainda vive na solidão, ‘ficou muito só’; sem informação; sem ter uma forma de renovar sua visão de mundo; de alimentar sua força social, política e econômica; tornou-se um marginal da família negra mundial; e não tem idéia de como a nação negra, a família negra é grande, consoante entrevista de Abdias Nascimento na Revista Veja de 28 de junho findo, é de imaginar-se a solidão na qual ainda vive o negro do Brasil Central.
Aqui no Brasil Central, também o extermínio da raça, como ocorre com a do índio, é um sintoma evidente. Há um velho condicionamento, de origem evidentemente branca, impulsionando-o a amorenar-se. O presidente da Ordem dos Advogados de Minas Gerais é um negro. Mas nunca vi da alma mais branca. Uma consulta ao censo de 1950, o último em que se apurou a composição do povo brasileiro segundo a cor, mostra o quanto o negro desses gerais vem tornando-se mulato ou moreno. Entre o censo de quarenta e o de cinquenta, isto é, numa década, o negro goiano diminuiu-se em dezessete mil almas. No Mato Grosso do Norte, onde o que se chamaria ‘bugrismo’ predomina, essa assertiva não é diferente.
Quer dizer: o negro do Brasil Central nada sabe do que ocorreu com a chamada Frente Negra na década de trinta. Desconhece o que foi o Teatro Experimental do Negro na década de quarenta, iniciativa do líder negro Abdias Nascimento. Nem imagina esse novo Movimento Negro Unificado Contra a Discriminação Racial, recentemente fundado n o Rio de Janeiro e São Paulo. alastrando-se noutras capitais do Sul e Nordeste. Também pudera! Foi dos últimos a saber, em 1888, que tinha sido legalmente liberto, quando entrou noutra terrível escravidão, a de ser marginalizado – social, política, cultural e economicamente, desclassificado e sem opções, máxime porque não tinha, como não tem – nem condições de ordem psicológica – para enfrentar o novo status. Enfrentou no Brasil Central, já três séculos de isolamento geográfico e humano, diante dos ermos distanciais da geografia e da carência de cidades, em estado de solidão e sem visão de mundo.
A notícia da libertação de 1888, em Mato Grosso, chegou primeiro em Montevideu, no Uruguai, através de um vapor de nome Coxipó. Isso, um mês depois de sancionada e divulgada a lei, num telegrama oficialmente endereçado aos brancos, que ainda dominam e manipulam o poder (cf. narrativa de Rubens de Mendonça). Isto mostra que o negro do Brasil Central, alem de tudo, é uma vítima do tempo e dos obstáculos da geografia. De manipulação. Só faltava essa.
(Martiniano J. Silva, advogado, escritor, membro do Movimento Negro Unificado, da Academia Goiana de Letras e Mineirense de Letras e Artes, Ubego, IHGGO, mestre em história social pela UFG, professor universitário, articulista do DM [email protected])