Opinião

Um berimbau na Itália

Diário da Manhã

Publicado em 25 de novembro de 2015 às 22:13 | Atualizado há 9 anos

Hoje, com a globalização, torna-se mais fácil a troca de experiências entre as culturas nacionais e não é de se estranhar que de repente um guru indiano se instale com sua tenda em Roma ou um discípulo do histórico Mestre Bimba, da Bahia, abra uma academia de capoeira em Nova Iorque. Um e outro encontrarão adeptos.

Vimos, por exemplo, como fruto de um processo histórico, a cavalhada transportada da Europa medieval e que chegou até nós por intermédio de Portugal, hoje incorporada à cultura brasileira. Também o Brasil já exportou fatos folclóricos (um exemplo é o fado, transportado para Portugal) que passou a fazer parte do folclore português. Quem diria que não seria possível fazer uma revolução na Itália, concitando o povo à luta com um simples toque de berimbau?

Não chegaria a tanto, mas quero transmitir a experiência de como introduzi um berimbau na Itália, com tamanho sucesso, que acabei por doar o tão cobiçado instrumento a um maestro da cidade de Perugia, que passou a utilizá-lo em concertos futuristas. Até hoje, guardo lembranças indeléveis das festas tradicionais que presenciei na pátria de Cristóvão Colombo, que além de descobrir a América, nos ensinou como colocar um ovo em pé.

Na Itália dos canhões de guerra projetados por Leonardo da Vinci, causei espanto a um guarda do aeroporto em Roma quando dele me aproximei ostentando um berimbau, como se fosse uma arma primitiva que representasse uma ameaça à segurança pública. Tive que explicar que se tratava de um instrumento musical, que historicamente foi utilizado por escravos no Brasil para marcar o ritmo dos passos da capoeira, uma luta inventada como forma de defesa pessoal. O guarda ficou curioso e logo quis aprender alguns toques de berimbau.

O folclore, diga-se de passagem, assim como o futebol e os esportes em geral, se prestam como instrumentos de intercâmbio cultural e de aproximação entre os povos. Por isso as manifestações folclóricas como retrato da cultura popular, são utilizadas e tão apreciadas como atrações turísticas. Um toque de berimbau, por exemplo, é bastante para formar logo uma roda de curiosos ou admiradores. Foi assim que me fiz notar como brasileiro quando estudei na Itália na década de 1970, sempre comparecendo aos eventos estudantis com meu berimbau a tiracolo, que, modéstia à parte, competia com os sofisticados instrumentos europeus.

Já no avião da Alitália em que eu viajava, sem querer chamei a atenção dos tripulantes e passageiros que me encaravam estupefatos por me ver portar aquele estranho instrumento de percussão, na forma de um arco de bodoque, com um fio de arame esticado, tendo atada a uma extremidade uma pequena cabaça acústica. Percutindo o fio de arame, com auxílio de um caxixi e uma vareta, eu retirava aleatoriamente os sons desejados. A pedido dos ouvintes curiosos, acabei fazendo a demonstração de alguns toques de berimbau, sendo afinal acompanhado, com batidas de palmas, ao ritmo de uma cantiga de capoeira, a que respondiam em coro: – “Ô Inácio, ô Inácio, / mulher parida não come! / – Ô Inácio, ô Inácio, / parida do mesmo dia! / – Ô Inácio, ô Inácio, / se ela come, ela morre! / – Ô Inácio, ô Inácio, / e o filho não se cria!”

Quando desci do avião no aeroporto Leonardo da Vinci, popularmente chamado Fiumicino, já tinha no bolso alguns endereços de colegas de voo para agendar futuras visitas, tudo graças ao meu exótico berimbau cujos sons me abriam caminho como os da sonora língua de Dante Alighieri.

Já instalado em Perugia, frequentando a Universidade Italiana para Estrangeiros, a convite do professor Ruggero Puletti, tivemos ocasião de visitar uma escola fundamental italiana no povoado de Mercatello, perto da cidade de Perugia, capital da região da Úmbria. Levando comigo, é claro, o já conhecido berimbau. Para satisfazer à curiosidade do leitor, vou lhe contar esta pequena história.

 

O som exótico

Tratava-se de um encontro marcado com estudantes estrangeiros, num pequeno grupo escolar que funcionava num prédio com instalações modernas, não obstante o caráter medieval do lugarejo, situado em meio a um terreno irregular com declives e aclives, tendo num ponto ao alto uma igrejinha que lembra a nossa Santa Bárbara da Cidade de Goiás.

O vigário local, padre Aldo Federici, as professoras muito simpáticas, Marisa Geremia, Franca Mondandi e Rita Tommasello, supervisora educacional dona Flávia Leonardi, convidados maestro Algeo Cipoletti e professora Tina Scatena, além de outros, formavam uma coluna respeitosa, em pé, ao fundo da classe. As crianças sentadas, mansinhas como ovelhas. Era uma disciplina européia, nenhum murmúrio, silêncio absorvente, expectativa e curiosidade.

O professor Puletti, da dita universidade para estrangeiros, apresentou os visitantes e explicou o sentido daquele contato de intercâmbio cultural, com a presença de estudantes de diversos países. Cada um deveria apresentar-se e representar o próprio país, à sua maneira. Chegou minha vez. A sala de aula já repleta de crianças. Os meninos tinham os olhos bastante abertos, fixos, as mulheres e os homens, padre, professores e convidados, estavam estáticos, o ambiente era de impacto e suspense: peguei do instrumento, ajeitei-o em posição vertical do meu lado esquerdo, ajustei a vareta e o caxixi na mão direita, e na esquerda o dobrão, tirei um primeiro efeito de ritmo no arame vibrante, fiz uma pausa, expliquei o que é, donde veio, para que serve e como se toca o berimbau.

Começamos o divertimento. Não se imagine o efeito de um som de berimbau na Europa, o entusiasmo pelo ritmo brasileiro, a curiosidade surpreendente, além do que se pudesse supor, pelas coisas simples e os valores primitivos de uma cultura espontânea como a nossa. O entusiasmo crescia e com ele, o acompanhamento de palmas, num ritmo cada vez mais intenso, formando-se um coro uníssono, que repetia: Oi sim sim sim! Oi não não não!

O toque enchia a escola, o pátio, o céu. De um ângulo da janela (uma sala muito bem arejada) via-se, ou melhor, contemplava-se o verde ao longe emergindo sobre as colinas. Como num sonho, a paz franciscana dominando a paisagem. A natureza italiana na região da Úmbria é fascinante (abençoada, dizem os italianos) por ser a zona originária de São Francisco de Assis, onde reina o mito da paz natural.

 

Berimbau, lo dicono

Pois bem, no dia seguinte o professor Puletti, que é escritor e poeta, iniciou a aula declamando um poema ao berimbau, Berimbau lo dicono. Daí em diante, quebrou-se o tom solene da cátedra e o berimbau entrou como tema na austera universidade. E, como não podia deixar de ser, entrou também como tema para a literatura italiana. Sobre o poema, que publico a seguir, é interessante observar, por exemplo, a conotação dada à palavra “astecas”: querendo o autor com ela identificar o tipo de população que vive “nos meandros do Brasil”. Vale o sentido alegórico, mas não semântico do termo. A musicalidade contida no ritmo dos versos faz sentir o crescendo do toque (do berimbau, é claro) e a intensidade de movimento que este sugere. Poesia não se traduz, mas farei uma versão em português, em que, além da sonoridade dos vocábulos, se sente a visualização da floresta, com a impressão do autor quanto à figura do tocador de berimbau, que corresponderia à de um malabarista de circo.

 

Berimbau lo

(Ruggero Puletti)

Berimbau, o dizem os astecas perdidos

nos meandros do Brasil.

E os negros que viram a África distanciar-se e

perder-se no verde escuro do mar desconhecido.

É toque de tristeza.

Porém, se vibras a corda tesa do arco,

a baixa melodia se articula

e o passo de uma dança te excita a uma luta de sangue.

Não corno inglês: meu coração talvez

seja o cadenciado berimbau das florestas equatoriais.

Berimbau u u u berimbau.

Convite obscuro ao lento roçar de vultos da floresta

entre o crepitar de ramos secos

queimados pelo sol pendicular.

A melancolia cresce:

eis que o vulto do inimigo

me leva louco a empurrar o vento, que desaparece.

Te diverte, talvez

a palidez trucada do malabarista.

(Texto publicado originalmente em Itália Mater, memória cultural de um etrusco reencarnado em Goiás, de Emílio Vieira. Goiânia: Kelps, 2012, p. 111 a 117).

 

(Emílio Vieira, professor universitário, advogado e escritor, membro da Academia Goiana de Letras, da União Brasileira de Escritores de Goiás e da Associação Goiana de Imprensa – E-mail: [email protected])


Leia também

Siga o Diário da Manhã no Google Notícias e fique sempre por dentro

edição
do dia

Impresso do dia

últimas
notícias