Cheguei um pouco atrasado ao nosso encontro, tive problemas a serem resolvidos naquela quarta-feira; desculpei-me com dr. Joffre e ele, com seu “humor britânico”, acolheu-me com a alegria de sempre, porém acrescentando:
– Por hoje aceito a desculpa, pois estou ansioso para terminarmos a discussão que iniciamos na semana passada, aliás, aproveitei a semana para reler alguns clássicos da literatura sobre o assunto iluminismo e, por conhecê-lo bem, tenho certeza de que você também se preparou.
Senti que dr. Joffre estava de bem com a vida, ofereceu-me o tradicional tablete de chocolate e, em troca, dei-lhe o costumeiro pedaço de doce de leite que trouxe da reunião da Cooperativa Sicoob; nem bem sentei, acionou a sua metralhadora no meu rumo:
– Ouço, com muita frequência, a afirmativa de que a “Enciclopédia” de Diderot e D´Alambert foi a mola propulsora da revolução francesa, você concorda com isto?
Ao perceber a armadilha, tergiversei na resposta:
– Acho que teve influência, porém não com a intensidade que alguns historiadores costumam registrar, prefiro repetir o que dizem alguns outros estudiosos: o Iluminismo foi a ideia e a revolução francesa foi a ação!
– Também penso como você, se levarmos em consideração o publico que teve acesso aos livros (classe com poder aquisitivo alto, pois os preços dos livros naquela época eram muito caros), portanto o “povo” não os leu, até porque, acrescenta dr. Joffre, antes da revolução francesa de 1789, era restrita a circulação de livros que tratavam de filosofia e política, havendo grande exposição dos que falavam em erotismos e de “fuxicos”, principalmente os que tratavam dos disse-me-disse no dia a dia da Corte.
Basta dizer que Rousseau era conhecido apenas pelos seus romances e assuntos pedagógicos, como o livro intitulado de “Emilio”, onde ele ensina, em linguagem dirigida aos jovens, boas maneiras; seu livro que realmente trouxe grande contribuição para o relacionamento social da coletividade – Contrato Social – praticamente não era conhecido do grande público.
– Por outro lado, dr. Joffre, acredito que muitos daqueles que leram a “Enciclopédia” eram livres pensadores e algumas das ideias filosóficas expostas nos livros, principalmente as da lavra de Diderot, Voltaire, Rousseau, Jean Jacques Rousseau e Montesquieu, eram consentâneas com o que pensavam aquelas pessoas e, com certeza, elas passavam para o publico que estava próximo delas estes conceitos, que nada mais são que ideias do Iluminismo.
Acho que, antes de tudo, precisamos conceituar o que significa o “Iluminismo” e, para tanto, vamos recorrer a dois clássicos da literatura, Robert Darton (O Iluminismo como negócio) e Jorge Grespan (Revolução Francesa e Iluminismo); para mim, a síntese conceitual da expressão “Iluminismo” seria a inversão da conceituação da divisão hierárquica entre os homens aceita há milênios: – Os homens seriam distintos por natureza, alguns nascendo melhores que outros; O Iluminismo conseguiu substituir esta cabalística afirmação com apenas uma frase – Somos todos iguais!
Esta tentativa de sintetizar, afirma dr. Joffre, realmente funciona como “slogan” de mobilização de massas, porém, não atinge o âmago da questão; penso que Kant definiu melhor a ideia, ao afirmar que o Iluminismo - Ousa saber – Ou seja, ouse servir-se do próprio entendimento, não imite ou aceite, passivamente, as ideias das autoridades reconhecidas e temidas; em outras palavras ele convoca a população para fazer valer sua independência intelectual, questionar o conhecimento que é consagrado como definitivo, mesmo diante dos filósofos e sábios consagrados.
Creio ser a nossa próxima etapa, discutir a revolução francesa, afirma dr. Joffre, olhando-me com olhar desafiador, como a dizer:
– Vamos começar hoje ou deixamos para a próxima semana?
Dr. Joffre, por oportuno e até para desanuviar um pouco a discussão, gostaria de narrar uma passagem do livro “Age of the French Revolution, vol I”, de autoria do historiador francês, Claude Manceron, onde se constata a força intelectual de Jean Jacques Rousseau perante os cidadãos parisienses; esta passagem ajuda explicar, como salientamos acima, o poder irradiante das ideias de Rousseau.
Conta o autor (Claude Manceron) no seu livro que citamos acima que Gluck, o famoso compositor austríaco, conhecido em toda Europa, havia escrito uma Ópera no idioma francês (Ephigénie-Efigenia) e desejava fazer o “avant premier” em Paris, provavelmente para homenagear sua conterrânea, Maria Antonieta.
O evento ocorreu em 19 de abril de 1774 e foi antecedido por discussões em todas as rodas da alta sociedade francesa; embora a capacidade do teatro fosse muito maior, as autoridades restringiram os ingressos para apenas 500 pessoas, tendo em vista a presença de quase toda a realeza; na porta da “Casa de Óperas” uma fila de carruagens despejava a realeza, cujos nomes (Conde, Condessas, príncipes, princesas, ministros) eram noticiados, quase sempre (dependendo da hierarquia na realeza) precedidos pelo soar de clarinetas que aumentava o “frisson” dos curiosos que se postavam nas imediações.
Grande comoção tomou conta do público que rodeava a entrada da Casa de Óperas, o relógio marcava 17:30 hs quando o Delfim (futuro Luiz XVI) e sua esposa, Maria Antonieta, acompanhados do Conde e da Condessa de Provence e de Artois, chegaram ao teatro.
Antes da abertura das cortinas, o publico aplaudiu Maria Antonieta, que estava deslumbrante, como sempre; os aplausos foram entendidos como uma homenagem, também, ao maestro, seu conterrâneo.
Para não alongar a descrição da festa, vou resumir o que o autor do livro descreve: foi um sucesso extraordinário, com alguns momentos de prolongados aplausos, “lavando a alma” de Maria Antonieta, como sabemos sem prestigio no meio político, da sociedade e principalmente da Corte, daí ela ter resolvido se aproximar do povo por intermédio da musica.
Gluck foi aplaudido de pé, não só pelo publico como pela realeza; no entanto ele não viu entre os que o aplaudiam a figura majestática de Jean Jacques Rousseau, provavelmente a única coisa que ele aspirava (alguns dias antes da apresentação, Gluck foi à casa de Rousseau para mostrar-lhe, em primeira mão, algumas partes da ópera).
Embora tenha tido estupendo sucesso, Gluck estava aflito, não ouvira, de quem desejava ouvir, qualquer manifestação a respeito da ópera.
No dia seguinte um estafeta foi a sua casa com uma carta:
“Monsieur le Gluck.
Estou vindo da sua ópera ‘Efigênia’. Achei-a maravilhosa, você conseguiu o que eu achava impossível até agora. ‘Ifigênia’ me levou a mudar todas as minhas ideias. Isto prova que o idioma francês é adaptável, como outros, para um estilo musical forte, tocante e sensível.
Por favor, aceite meus sinceros cumprimentos e minha modesta saudação.
Paris, 17 de abril de 1774 - Jean-Jacques Rousseau”
(Hélio Moreira, membro da Academia Goiana de Letras, Academia Goiana de Medicina, Instituto Histórico e Geográfico de Goiás)