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OPINIÃO

A liberdade, o Supremo e a Constituição

O homem nasce para ser livre e disso ninguém discorda, sendo a liberdade o valor máximo da nossa existência, do que servem de exemplos as inúmeras passagens da história em que a sociedade lutou para defender a liberdade. Não pretendo aqui mostrar de maneira pormenorizada a forma como a liberdade foi tratada ao longo dos séculos.

Quero cuidar da nossa realidade a partir do que preconizado na Constituição de 1988, pois a meu sentir essa deve ser a matriz teórica para discutir a decisão tomada pela Suprema Corte no último dia 17 de fevereiro. Sim, não importa o que dizem os ordenamentos jurídicos dos países citados pela maioria, nem tampouco as lições da doutrina alienígena, pois nada disso pode modificar o texto da nossa carta maior, cuja obediência deve ser de todos, em especial de quem tem o dever de guardá-la e defendê-la em favor da sociedade. Quero ressaltar, a propósito, que o Supremo é guardião, mas não é dono da Constituição. A Constituição é da sociedade.

Veja-se que a liberdade está em posição de destaque no texto constitucional, não só quando assegura a presunção de inocência, mas quando garante o devido processo legal, a ampla defesa, o relaxamento da prisão ilegal, o direito de não ser preso sem motivação idônea, o habeas corpus e a indenização em caso de erro judiciário. Enfim, não há como negar que a nossa constituição é libertária.

No ponto, importa ressaltar que a garantia segundo a qual ninguém pode ser considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória, ao lado das demais garantias acima referidas, encontra-se protegida pela nota de cláusula pétrea, ou seja, somente o constituinte originário poderia suprimi-la do rol das garantias individuais do homem. Esse é o argumento central que me entusiasma a escrever esse modesto artigo, pois o que o Supremo fez, em última análise, ainda que movido pela melhor das intenções, foi suprimir, ou relativizar, uma garantia fundamental, coisa que o Congresso Nacional que aí está não poderia fazer, nem mesmo por meio de emenda ao texto constitucional. A questão é simples assim!

Fora disso, como todo o respeito, a questão vira sofisma e só confirma a tese de que o Direito é mesmo uma massa de modelar. Ao lado desse ponto matricial da questão, vejo com muita preocupação a guinada na jurisprudência, pois isso me faz pensar que a Suprema Corte poderá dizer daqui a pouco que não há mais reserva de jurisdição para a quebra do sigilo das comunicações telefônicas, por exemplo, como já está sinalizando ao dizer que a Lei Complementar 105 é constitucional.

Veja a gravidade do problema, pois a argumentação da maioria ao autorizar o cumprimento da pena após a confirmação da sentença pelo segundo grau de jurisdição, passa pelo sentimento da sociedade e isso me leva a concluir que havendo um levante popular contra outras garantias constitucionais poderá haver mais retrocesso no plano dos direitos fundamentais.

Pois bem. Se o problema está na nossa Constituição, sejamos francos e honestos para propor uma nova carta mais ajustada aos anseios da nossa sociedade, o que não me parece o caso, pois a nossa Constituição, embora pródiga no capítulo dos direitos fundamentais, ainda está longe de ser inadequada para nossa realidade, sobretudo quando se sabe que a sociedade quer é comida, diversão, escola, hospital, segurança, estradas, emprego e, claro, menos corrupção, mas não é por conta de meia dúzia de réus endinheirados que permanecem soltos por que ainda não condenados em definitivo que faremos essa mutilação do texto constitucional.

Estou certo de que pagaremos um preço alto por essa mudança de rumo na jurisprudência, pretensamente motivada pelo sentimento da sociedade, isso porque não vai demorar para vivermos um quadro em que pessoas inocentes, principalmente os costumeiros clientes do sistema punitivo, serão levados ao cárcere e depois postos em liberdade porque a decisão estava errada. Penso que a decisão do Supremo enfraquece a jurisdição extraordinária, que é prestada pelo STJ e pelo próprio STF, na medida em que sugere que o Recuso Especial e o Extraordinário, são apenas meios de protelação da conclusão do processo, quando se sabe que há muitos casos – não tenho os números – em que há provimento desses apelos excepcionais, senão para absolver, mas para reduzir a pena e isso pode mudar o regime de cumprimento, com as consequências que todos conhecemos.

Outro aspecto que me preocupa diz com os critérios que serão adotados para definir quem e quando haverá o cumprimento imediato da pena, pois tenho lido que a prisão vai depender de pedido do MP. Isso me parece mais grave ainda, pois se a prisão está autorizada por que em conformidade como o texto constitucional, como admitir que dependa de pedido do MP? Ou o acórdão deve ser executado imediatamente por que estamos falando de cumprimento da pena, ou estamos criando uma nova espécie de prisão cautelar fora do plano normativo, em franca ofensa ao princípio da legalidade, até agora vigente entre nós, ao menos até que o Supremo lhe tire a validade. Outra questão que me atormenta é o fato que a decisão tomada pelo Supremo se mostra na contramão do esforço que tem sido feito para reduzir o número de presos provisórios no país. Vale dizer, com a decisão confirmada ou não pela segunda instância, haverá um enorme número de pessoas – os de sempre – que irão para a cadeia antes que terem uma sentença com trânsito em julgado, o que irá degradar ainda mais o que já é a reinvenção do inferno.

Some-se a isso, o fato de que o STJ e o STF irão conviver em breve com uma enorme quantidade de processos com réus presos, o que que irá gerar uma demanda ainda mais sensível, tendo em vista a garantia, ainda vigente, da duração razoável do processo, ou seja, em breve, estaremos vendo os ministros da duas Cortes em desespero com tantos réus presos e os advogados pedindo preferência no julgamento, tudo por conta de uma irrefletida decisão que não levou em conta todas essas consequências, supondo que iria apenas fechar uma das janelas da impunidade. É o que penso, com a devida vênia.

(Cleber Lopes, advogado em Brasília e secretário-geral Adjunto da OAB/DF)

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