Pela terceira vez o garoto foi levado à presença do Comissário de Menores, que o inquiriu, preocupado e aborrecido:
– Mas outra vez, meu filho? Por que você rouba tanto?
– Não sei fazer outra coisa, doutor. Replicou o menor.
– Mas ninguém o ensinou a trabalhar?
– Não “seu” doutor...
E completou, baixando a cabecinha, mostrando uma cabeleira revolta e empastada de sujeira:
– Só me ensinaram a roubar.
Não existe quadro mais triste no mundo que o da criança desamparada, que caminha entre os homens arrastando um drama íntimo que a sociedade desconhece ou que procura desconhecer; se o pequeno vai pedir esmola, batendo à porta de uma casa, chamam-no de vadio e malandro; se caminha à procura de trabalho, acreditam-no desmerecedor de confiança e não lhe dão o devido valor; se tem pai, este é tão irresponsável que curte vício e preguiça o dia inteiro, e se o filho não chega a casa com alguma féria conseguida de uma forma ou de outra, espanca-o e o acusa de inútil ou coisa que o valha; se o representante de uma casa de amparo a menores vai pedir a autorização do pai para que o menino seja devidamente recolhido e educado na Instituição, escuta dele o brado de revolta nascido da ignorância:
– Não! Esse malandro tem que trabalhar para ajudar em casa!
– Que profissão o senhor ensinou a ele?
– ?...
– O homem, agora, mais alterado, responde:
– Ele pode trabalhar em qualquer serviço!
– O senhor deu-lhe escola?
– Como? Não tenho dinheiro.
– Mas a escola pública é de graça.
– Ele não pode estudar. Tem muito que fazer!
– E o senhor, o que faz?
Antes que ele respondesse qualquer coisa, sua esposa, um trapo de gente, uma mulher magra e de olhos fundos, envelhecida 40 anos além de sua idade atual, adianta a resposta, como a censurá-lo:
– Bebe! Bebe muito e espanca a nós todos, aqui.
– Cale a boca, mulher! Ninguém bateu no cocho!
– Deixe-nos dar escola, carinho, profissão e assistência a seu filho?
– Não!
– Mas ele está sofrendo muito.
– Está sofrendo ou não, passando fome ou não, dormindo na rua ou não, tem que ficar é aqui e pronto! E se eu morrer de fome, ele também morre!
E sai para o interior do casebre, cuspindo.
A mulher excessivamente magra, está de pé, recostada à parede, tem a mão direita apoiando o queixo e a outra comprimindo o ventre, como se tentasse anestesiar uma dor qualquer; fita tristemente o filhinho sujo, descamisado, calcinhas ensebadas, descalço, cabelos grandes e imundos, e fala, deixando escapar dos lábios algumas palavras que eram quase gemidos.
– Não tem jeito, moço... Meu filho nasceu para sofrer.
O garotinho tem nos olhos um estranho brilho. E no brilho daquele olhar, parece que Deus emite um lume de esperança nos homens, fazendo-nos acreditar que o Amor um dia haverá de dominar todos os corações, e então os pequeninos não mais caminharão nas trevas do abandono ou escravizados por mentes cretinizadas de pais inconsequentes.
...Haverá dentro em breve um homem diferente que poderá, quem sabe, diminuir a burocracia dos órgãos oficiais de amparo aos menores, substituindo também os seus emissários egocêntricos e cheios de muita técnica, que falam em nome da infância desamparada, apresentando a necessidade que tem a criança de muito amor e muito cuidado, sem, todavia, terem a coragem de abraçar o moleque sujo da rua que lhes pede esmola, receando qualquer contato que possa lhes sujar a roupa alinhada, limitando-se a fitá-lo com frieza, descaso e repulsa, embora derramando dos lábios toda a sabedoria de uma técnica que não aplicam com a força do amor, mas simplesmente com o impulso da vaidade. Eu acredito nesse homem que há de vir antes mesmo que contemos até 100, e virá do seio encantado desse mesmo Ideal de onde veio um certo Chefe da Nação. Um movimento de amor muito grande – não sei se estou sonhando – haverá de sacudir cada brasileiro de boa vontade, e as criancinhas abandonadas terão muitos amigos, muitos protetores, muitos anjos de carne e osso que as envolverão nos braços da Caridade, do carinho e da ventura. Meus pequeninos que têm o painel das estrelas como teto para o sono de toda noite, só admirarão os céus tão claros ou turvos, pelas janelas abençoadas dos seus próprios lares, aconchegados que estarão aos braços amorosos do amparo, do conforto e da felicidade.
Será que eu os verei assim? Esses dias venturosos iluminarão porventura as minhas faces sulcadas pelos anos e pelas tormentas? Quem sabe...
A esperança é doce embalo que nos faz envelhecer sorrindo.
Toda gente diz que “a infância de hoje será o mundo de amanhã”. É bem verdade. Mas se o mundo de hoje não ampara a criança de agora, a humanidade do futuro terá o reflexo de nossas mazelas presentes.
O processo oficial de assistência a menores não desenvolverá suas finalidades reais enquanto não aliar o Amor à Educação.
Não custa nos esforçarmos um pouco mais nas tarefas diárias, estendendo braços fraternos às criancinhas que perambulam pelas ruas, à cata de alimento, agasalho e amor.
Mas não poderemos oferecer aos pequeninos em abandono apenas o pão, a veste e uma alegria momentânea; bem maior seria a nossa doação se nos dispuséssemos a dar-lhes o carinho de pais, adotando alguma criancinha doente pelo menos até que ela se reestabeleça, oferecendo-nos como patrocinadores de seus estudos, ou, enfim, mantendo-a em nosso lar até que adquira a sua própria independência, como fazemos com os nossos filhos, se tivermos possibilidades para tanto; mas se não tivermos e, mesmo assim, o fizermos grande será o nosso merecimento espiritual.
(Iron Junqueira é escritor)