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Teologia(I): ciência de Deus ou dos homens?

Como sabemos, grande parte da estrutura de pensamento da civilização ocidental é devida aos gregos. Foram eles, noutros termos, os responsáveis por formar o modo de vida do Ocidente, transmitido aos Romanos e, por decorrência, a toda a posteridade histórica. Nesse sentido, a Grécia antiga é o berço das mais antigas ciências de que temos notícia, entre as quais a filosofia encontra um lugar de destaque. Foi também nesse contexto que encontramos pela primeira vez alguma referência ao estudo das divindades, mesmo que em grande parte ainda relacionado à mitologia. Nesse sentido, a teologia, enquanto discurso sobre Deus, nasce quase que de um mesmo parto que a filosofia, sendo, inclusive, por muito tempo tomadas como uma mesma ciência.

Localizamos muitas referências ao termo teologia nos discursos de filósofos antigos como Platão e Aristóteles. Mas isso não é tudo. A filosofia sempre se dedicou à reflexão sobre Deus e as realidades transcendentes, de tal sorte que, em plena modernidade, Hegel ainda se debruçava sobre um conteúdo que, por si mesmo, era específico à teologia. Para Hegel, teologia e filosofia constituíam a mesma ciência do Espírito, aquela das causas primeiras, conforme a corrente aristotélica insistia em dizer, ou do grande Bem, se preferirmos a vertente platônica. E isso não parou por aí. Também na filosofia contemporânea há importantes referências à teologia. Edmund Husserl, por exemplo, quando já estava em seus últimos anos, após décadas de dedicação e extremo rigor, chegou à conclusão de que o objetivo de toda filosofia, seja ela o mais racional possível, era conduzir a Deus, como ponto de chegada último de toda a atividade teleológica do homem. Existir, nesse caso, significa compelir-se rumo ao eterno, o imutável, o incomensurável.

Nesse sentido, se a definição clássica, tanto advinda da acepção literal do termo teologia, quanto considerada a partir da dedução de vários expoentes da literatura ao longo da história, insiste em definir Deus como objeto de estudos da teologia, por outro lado, isso significa equiparar o transcendente ao nível do imanente, ou seja, tornar Deus um objeto entre outros.

Em primeiro lugar, tal definição esbarraria no problema de estarmos diante de um conceito abstrato e não de uma realidade natural. O conceito de Deus, desse modo, nasceria de uma conceituação negativa, extraído da existência concreta e dos fenômenos naturais. Se não podemos tomar Deus como tal objeto de estudo, tomemo-lo, pois, por meio de suas ações e interferências no mundo. Este foi um princípio muito utilizado no período medieval, para o qual a definição do divino se daria em oposição ao humano e, por isso, o designarmos como o eterno, o imutável, o onipotente, o onisciente, o onipresente, e assim por diante.

A teologia, portanto, sempre se amparou da estrutura epistemológica da filosofia – embora de determinado ponto em diante tenham começado a se distanciar uma da outra. É daí a origem da conhecida e às vezes polêmica expressão medieval segundo a qual a filosofia é ancilla theologiae. Isso quer dizer que, ao menos a princípio, a teologia recorreu aos fundamentos lógicos próprios da argumentação filosófica, além de todo um conjunto discursivo capaz de alicerçar a própria existência de Deus e sua ação criadora. Talvez por isso Agostinho tenha se inspirado na obra platônica, ou Tomás de Aquino no aristotelismo, ambos as referências cristianizadas em favor da teologia nascente.

Do ponto de vista bíblico, contudo, devemos atribuir a São Paulo a paternidade do que denominamos por reflexão teológica. As cartas paulinas foram e permanecem sendo grandes fontes inspiradoras para o debate teológico. Se atribuirmos a Cristo a fundação do cristianismo, erguido sobre o alicerce dos apóstolos, devemos, de igual modo, admitir a influência de Paulo sobre este mesmo cristianismo primitivo. Note-se, por exemplo, o debate acerca da abertura cristã aos novos povos, em oposição à sua circunscrição ao universo judaico. Isso para não mencionar toda a eclesiologia e cristologia que podem ser extraídas dos escritos paulinos. Teologia, para Paulo, é anúncio da fé, numa exposição que sempre considera o interlocutor.

Não obstante o que dissemos, os primeiros grandes teólogos reconhecidos pela tradição surgiram em face das divergências oriundas do agnosticismo disseminado especialmente nos primeiros séculos da era cristã. Entre esses, destacam-se os padres apologistas, tais como Irineu, Tertuliano e Hipólito. Nessa época surgiram as primeiras interpretações do Antigo Testamento à luz da vinda do Messias como Palavra (logos) eterna de Deus. Praticamente toda a literatura veterotestamentária foi submetida à luz do Novo Testamento. Este também é o berço do conceito trinitário de Deus, atribuído a Tertuliano: Deus, Logos e Sapientia, mais tarde, Pai, Filho e Espírito Santo.

A posterior teologia medieval correu atrás de uma investigação que se pautava pela relação entre razão e fé, de onde nasceriam importantes teses sobre a revelação divina, sobre o pecado e o livre arbítrio, sobre a salvação e a graça etc... Os compêndios de teologia elaborados nessa época se intitulavam Summas. A mais conhecida em nossos dias é a Summa Theologica, de Tomás de Aquino. Este importante tratado deve ser admirado muito mais por seu aspecto agregador de diferentes posicionamentos do que propriamente pelo ineditismo de seus conceitos. Tomás de Aquino, além de grande pensador, fora um dos maiores compiladores (no sentido do atual termo “pesquisador”) de seu tempo.

A despeito desses grandes clássicos, a teologia contemporânea também cunhou nomes reconhecidos em toda parte. É o caso de Vicente Granat, Yves Marie Joseph Congar, além de outros nomes oriundos da América Latina, em sua maioria vinculados à Teologia da Libertação. Para Granat, por exemplo, a teologia deve ser definida como uma ciência sobre Cristo Criador, Salvador, Sacerdote, Distribuidor de Graças e Realizador da fé. Além disso, em consonância com esse autor, também poderíamos definir a teologia como uma disposição metódica dos resultados da cooperação da razão humana com o pensamento divino revelado em Cristo. O mesmo, contudo, não encontramos na obra de Yves Congar, que, embora prossiga em comunhão com grande parte o bojo teológico estabelecido pela tradição precedente, ressalta que o objeto da teologia deve ser Deus como Deus, sendo que o homem e o mundo devem ser postos fora de circuito para esta ciência – apenas analisados na medida de sua relação com Deus. Os temas nucleares de sua obra concentram-se na doutrina sobre a Igreja, eclesiologia, e o Espírito Santo, pneumatologia.

A título de conclusão, vale a pena mencionar algo sobre a Teologia da Libertação, título como ficou conhecida a teologia desenvolvida na América Latina após o Concílio Vaticano II, especialmente através do “Pacto da Catacumba de Santa Domitila”, realizado por alguns padres conciliares (a maioria da América Latina). A partir daí se originou a reflexão dos documentos do episcopado latino-americano reunido em Medelín e Puebla, em 1968 e 1979, respectivamente. O ponto alto dessa corrente se debruçaria sobre o entrelaçamento entre fé e vida, e por isso a importância de temas relativos à política e às sociedades contemporâneas. O apelo por uma Igreja dos pobres e para os pobres e a ênfase no protagonismo dos leigos, especialmente dos jovens, se tornariam o refrão desta corrente teológica, cujo maior nome no Brasil é certamente o do teólogo Leonardo Boff.

Em outros textos falaremos mais sobre esta “Ciência de Deus”, a teologia, enfatizando alguns outros aspectos que a constituem.

(José Reinaldo F. Martins Filho, nestre em Filosofia (2014) e mestrando em Música, ambos pela UFG. Doutorando em Ciências da Religião pela PUC-Goiás)

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