Um fato que consterna e aflige profundamente a quase todo mundo acaba de ocorrer em Goiânia, e não sei se a imprensa, ao noticiar a ocorrência, deu-lhe a devida importância, principalmente no que tange à lição de profundidade que o caso encerra.
...Um menino foi atropelado na rua por um carro que continuou seu curso acelerado, sem que o seu condutor se dispusesse a socorrer a vítima; o garoto, inspirando sérios cuidados, ficou estirado no meio da via pública, numa poça de sangue, sem que a multidão curiosa cuidasse de socorrê-lo imediato; um senhor, porém, varando a multidão, recolheu a a criança e a conduziu às pressas para o hospital mais próximo; lá chegando, pediu à recepcionista providenciasse um médico a fim de salvar o pequeno; no entanto, a moça disse que, antes de tudo, era necessário que ele fizesse, ali, um depósito de quatrocentos reais, após o qual, então, chamaria o facultativo; o homem explicou à jovem que ele não dispunha, sequer, de um centavo; que o pequeno acidentado não era nada dele; diante da frieza da recepcionista, que fingia nada ouvir e que não se comovia, nem mesmo, com o estado melindroso e desesperador da criança, o homem — que pela sua idade avançada e pelos seus fatos rotos e sebentos — mais parecia um mendigo, apelou até às lágrimas, inutilmente, e disse à atendente: — Pelo amor de Deus, minha filha! Recolha esta criança aí até que eu possa juntar a quantia que me pede! E entrou para o interior do hospital, colocando o enfermo num dos quartos, saindo, depois, para coletar o dinheiro solicitado.
Os senhores sabem que em muitas casas de saúde, prontos socorros, os seus responsáveis parecem que, propositadamente, selecionam pessoas frias, desumanas, de corações empedernidos e almas endurecidas, para ocuparem os cargos de recepcionistas, rebatendo, desta forma, e de maneira polida, aos necessitados, sofredores e indigentes que ali se aportam, pedindo socorros; não digo que isto acontece em todos os hospitais, mas que é uma horrenda realidade na maioria, isto é, sem que as autoridades competentes tomem qualquer providência! Pois na casa de saúde em referência, o menino permaneceu sem os urgentes socorros durante quase duas horas, e somente quando o velho voltou com o dinheiro contado na mão, e que coletara pedindo esmola pelas imediações, é que a moça — uma doente da alma, por certo! — se dispôs a chamar o médico; mas quando este chegou à sala de emergência, onde estava o pequeno acidentado, a fim de socorrê-lo, estremeceu-se de horror, ficou pálido como uma cera, e arquejou num gemido de profunda dor... O menino era seu filho!
Tesouro nenhum na terra vale mais do que a vida de um agonizante.
E que fortuna terá mais valor do que a existência de uma criança?
No entanto, pessoas existem — com exceção, claro! que se interessam mais por um valor de quatrocentos reais do que pelo alívio que podem dar a um infeliz, que se estertora aos rigores de uma dor superlativa.
Essas mesmas criaturas, toda noite, fecham as portas de suas casas e dos seus corações, para não atenderem a ninguém; será que o seu repouso é mais importante que a vida de uma criança que perece?
Ah, pobres condenados serão esses que receberam de Deus todos os recursos necessários para amenizar as dores e salvar as vidas, e que, por comodismo, ou ambição, não o fazem — ai deles!...
Experimentarão, um dia, toda a extensão indescritível do seu desdenho!...
Porque nem as suas próprias vidas custaram o seu próprio esforço e, muito menos, os seus dons de curar e servir; foi Deus, apenas Ele, que concedeu a essas almas a ocasião de peregrinarem pelo mundo, de estudarem, conhecerem os segredos da ciência, no sentido de que, com isto, pudessem trabalhar para Ele, espalhando a bênção do alívio, da Paz e da saúde!
E quantos titulados desses não existem por aí que, para recepcionistas de seus hospitais, selecionam apenas pessoas de corações frios como as geleiras do Ártico, de olhos gelados como os olhos das estátuas e de faces esculpidas na rocha do egoísmo, da ambição e da crueldade!
... Estão prontas a defenderem os interesses dos seus patrões, mesmo que, para tanto, pobres e crianças pereçam por falta de assistência, de socorros imediatos, simplesmente porque os seus responsáveis, no momento cruciante, não contavam com a “chave” que abriria a porta da salvação, ali transformada na poderosa barreira da sovinice, que apenas dá passagem aos que podem mostrar o brilho da moeda que fascina e comove esses corações empedernidos e desnaturados!
Eu não queria revelar o que agora passo a contar, senhores, uma vez que o tema vem a calhar; no entanto vamos lá...
...Foi uma noite terrível, aquela! O médico estava à beira do leito de minha filhinha, desdobrando toda a sua alma a fim de salvar a minha pequenina; percebendo debaldes todos os seus esforços, achei que era necessário buscar reforços para aquele bom homem que tudo fazia para salvar a minha filha...
E então fui à casa de todos os médicos que conhecia, chamei-os por todos os meios: acionei as campainhas de suas residências, gritei-lhes pelos nomes, telefonei-lhes, pedi a parentes que se comunicassem com eles! Mas nada! O relógio da matriz anunciava duas horas da manhã quando eu atravessava as ruas de Anápolis indo às casas de todos os médicos da cidade, pessoas do meu inteiro conhecimento, da minha confiança, e jamais os acreditava tão seriamente preocupados com o repouso, posto que eu, malgrado as minhas imperfeições, à minha completa parvoíce, jamais seria capaz de permitir que uma criatura sofresse na minha presença, fosse que hora fosse, sem que me dispusesse a tomar qualquer providencia, muito menos acreditava que médicos — há exceções, claro! — que conhecem a ciência de socorrer, aliviar e salvar, sem muitas dificuldades, em relação à perfeita ignorância de nós outros, no assunto, seriam capazes de ignorar os clamores doridos de um pai, que assiste os olhinhos brilhantes de sua filhinha se apagando, depois de baldados todos os seus esforços para acordar médicos insensíveis que prezam mais o descanso do que a vida do semelhante...
As horas seguintes foram angustiosas, repletas de sombrias expectativas; e somente quando as claridades do dia invadiram os lares da terra, é que os médicos amigos, em cujas portas bati à noite, de coração fremente e alma em dor, foram chegando ao hospital, para tomarem conhecimento de tudo, mas já era tarde... muito tarde.
Eu não os culpo, posto que, se a criança tivesse mesmo que sobreviver, o médico que a assistira durante toda a noite, com a ajuda de Deus e das nossas preces, teriam impedido que os seus olhinhos se fechassem para a vida; o que pude verificar, nesse transe difícil por que passe foi o completo desligamento de alguns representantes da medicina à vida do próximo e, também, ao juramento que certamente prestaram, antes de serem diplomados; tal juramento, penso, existe, devido à imperfeição do ser humano, que não sabe nada ainda compreender a extensão de sua responsabilidade na terra, pois as almas nobres, para exercerem a sua função segundo os ditames do Amor ao próximo, não precisam de juramento para fazê-lo; executam os seus esforços de aliviar e socorrer com prejuízos, às vezes, aos seus próprios interesses pessoais, sacrificando, com prazer, algumas horas do repouso para assegurarem toda uma existência — de alguém.
Se a minha pequetita estivesse realmente destinada a sobreviver, Deus a teria curado pelas mãos e capacidade do médico que não a abandonou, em momento algum, pois a “Divina Providência serve o homem através do homem”, mas uma experiência tive, e dela não gostei, e passo a resumi-la com poucas palavras: não é nada seguro adoecer de noite, quando determinados médicos, além de já terem a consciência trancada, fecham a porta de sus casas e, também, tramelam o coração.
(Iron Junqueira, escritor)